Os grandes incêndios dos últimos anos e a perda de habitats, aliados à falta de recursos para investigação, podem levar ao desaparecimento de muitas espécies de aranhas únicas em Portugal e no mundo, sem sequer darmos conta, afirma Sérgio Henriques.
O alerta foi lançado numa entrevista à Wilder dada por este cientista português, líder do grupo de especialistas em aranhas e escorpiões da União Internacional para a Conservação da Natureza e especialista da Sociedade Zoológica de Londres.
Sérgio Henriques salienta também a singularidade do território subterrâneo português: “Para quem alguma vez sonhou em visitar o centro da terra e encontrar uma ‘selva’ tropical perdida no tempo, esse local existe, e fica nas cavernas de Portugal.”
Wilder: Estão para já descritas 829 espécies de aranhas em Portugal Continental. Este número é muito diferente de outros países europeus?
Sérgio Henriques: Os números variam muito de país para país, tal como o conhecimento que cada país tem da sua fauna. Será muitíssimo raro que exista alguma espécie nativa de aranha em Inglaterra que ainda não esteja descrita cientificamente, mas acontece todos os anos em Portugal. E mais vezes aconteceria, se houvesse recursos para estudar estes animais.
Ainda assim, Portugal tem um número considerável de espécies para a área que ocupa, devido à sua localização geográfica e à diversidade de habitats. Estamos localizados numa região de elevada biodiversidade, o Mediterrâneo. Ponto de encontro entre dois gigantes, África e Europa, Portugal foi um refúgio para muitas espécies durante a última glaciação: temos animais que sobreviveram aos impactos desta época no nosso país, mas foram erradicados de outros países do Norte da Europa.
As nossas cavernas são o melhor exemplo disso. Nelas temos espécies relictas [de grupos que já ocorreram na superfície mas que estão hoje isoladas nestas cavernas], cujos parentes mais próximos estão na Costa do Marfim, por exemplo. Essas são espécies de aranhas que já terão ocorrido numa área bem mais extensa do que a que hoje ocupam, mas cujos descendentes apenas sobreviveram no calor e segurança das cavernas portuguesas, tendo sido erradicadas em todos os outros habitats próximos na superfície.
Para quem alguma vez sonhou em visitar o centro da terra e encontrar uma ‘selva’ tropical perdida no tempo, esse local existe, e fica nas cavernas de Portugal.
W: E é possível estimar quantas espécies de aranhas existem em Portugal, incluindo aquelas que ainda não foram descritas?
Sérgio Henriques: Tenho a certeza de que o número será muito maior do que é hoje, mas não é possível fazer uma estimativa fiável. O número de espécies de aranhas descritas em Portugal cresce todos os anos e não me parece que vá parar tão cedo. Mas sem apoio, estas descrições são esporádicas e estão sobretudo dependentes de amadores.
Alguns fazem trabalho de topo, mas temos outros sem grande mérito, que descrevem espécies que claramente não são diferentes das anteriormente descritas. Alguns trabalham em colaboração com cientistas portugueses e com as autoridades, mas outros vêm “passar férias” e recolhem espécies em áreas naturais sem permissão de colheita e traficam-nas para fora do país.
Além disso, desta forma algumas áreas mais turísticas acabam por ser bem mais estudadas, como a costa algarvia, mas sabemos menos acerca do Interior do país, apesar da sua enorme riqueza biológica e da proximidade a Espanha. Pelo que é impossível fazer previsões sobre a velocidade com que novas espécies serão descritas ou registadas pela primeira vez para Portugal, quantas serão realmente válidas, e quando é que essas descrições vão começar a abrandar por estarmos a chegar ao número real de espécies que temos.
W: Os grandes incêndios que aconteceram nestes últimos anos podem estar a colocar em perigo aranhas únicas no país e no mundo?
Sérgio Henriques: Muitas das espécies de aranhas portuguesas estão adaptadas a incêndios ocasionais de baixa intensidade; algumas até podem depender deles. No entanto, os incêndios recorrentes com temperaturas muito elevadas, que afectam uma área enorme, dão pouca capacidade a alguns destes animais de recuperar. Particularmente quando já resta muito pouco habitat e as únicas áreas que se salvaram são urbanas ou agrícolas.
Além disso, Portugal não é um país enorme. E por isso, quando uma espécie ocorre apenas aqui, nunca ocupa uma área grande e não tem muita capacidade para se mover e viver noutros lados. E espécies como essas têm uma forte ligação à terra, são muito dependentes do seu habitat especifico e da estabilidade desse habitat.
W: E exemplos concretos de espécies afectadas?
Sérgio Henriques: Uma das que temo ter sido afectada pelos incêndios recentes é a Nemesia berlandi. É apenas conhecida de Fagilde, no Centro do país, e não era vista há quase 100 anos. Até que encontrei duas tocas numa pequena floresta.
Ao contrário de outras aranhas buraqueiras, que constroem tocas verticais com uma tampa, a N. berlandi parece construir tocas horizontais, o que a coloca em maior risco de não sobreviver às temperaturas elevadas de um incêndio. Infelizmente, o local onde encontrei as duas tocas era a única zona natural naquela área, que é sobretudo urbana ou agrícola, e a pequena floresta ardeu recentemente. Temo que não restem muitos outros locais apropriados para esta espécie viver.
É possível que algumas aranhas desta espécie tenham consigo sobreviver, mas tal como tem acontecido nas ultimas décadas, não há recursos para estudar esses animais. Na verdade, podemos estar a viver uma extinção silenciosa em que muitas espécies únicas do nosso pais desaparecem sem que saibamos, ou desaparecem antes mesmo de sabermos que existiam aqui.
W: Há outras ameaças para a conservação das aranhas?
Sérgio Henriques: Existem várias ameaças que parecem afectar as aranhas e outros invertebrados. A perda de habitat é uma das maiores e em Portugal está por vezes relacionada com os incêndios. Mas também com a urbanização e com a indústria mineira. Esta afecta particularmente a nossa fauna cavernícola, que é exepcionalmente única!
Mas temos também a construção de barragens, que prejudica os rios e inunda largas áreas únicas e de importância natural. E o aquecimento global, que impacta por exemplo a subida do nível do mar e aumenta a perda de habitat dunar (já afectado muitas vezes por outras ameaças), mas também causa a subida das temperaturas em habitats de alta montanha.
É provável que existam várias outras ameaças importantes que não tivemos ainda oportunidade e recursos para medir, uma vez que os esforços têm sido dirigidos para espécies endémicas [espécies que ocorrem apenas em território nacional]. Mas para além da perda de habitat, o uso de pesticidas agrícolas e a captura ilegal para venda ou coleccionismo têm certamente impacto em algumas espécies de aranhas portuguesas.
W: Os cientistas envolvidos nos trabalhos da Lista Vermelha de Invertebrados, como é o teu caso, estão a avaliar qual é o risco de extinção de várias centenas de animais invertebrados em Portugal Continental. Quantas espécies de aranhas estão a ser avaliadas?
Sérgio Henriques: As espécies-alvo desta Lista Vermelha são as endémicas do nosso país, que totalizam 42 espécies de aranhas, porque tememos que possam estar particularmente ameaçadas devido à sua distribuição reduzida. Por apenas existirem no nosso pais, a avaliação feita a nível nacional, como acontece neste projecto, é na realidade uma avaliação global.
Como espécie-alvo temos também a Macrothele calpeiana.
Esta aranha, apesar de ser endémica da Peninsula Ibérica – e não apenas de Portugal – é a única espécie que actualmente tem protecção oficial, neste caso pela rede Natura 2000. Por esse motivo, havia interesse científico e legislativo em analisar o seu estado de conservação.
Pessoalmente acho que é um imperativo moral protegermos o que é nosso. Se não o fizermos, quem o fará por nós?
W: Na tua opinião, ainda há muito para descobrir sobre as aranhas em Portugal?
Sérgio Henriques: Existe de facto muito a fazer, e não é que não haja gente nova com muito interesse ou conhecimento para isso, mas nunca houve apoio. E temo que ainda vamos perder muito mais habitat, espécies únicas e cientistas competentes, antes de termos o apoio que seria preciso.
Neste momento, nenhum aracnólogo activo português reside em Portugal. Emigrámos todos e continuamos a trabalhar no estrangeiro. Enquanto Espanha, por exemplo, embora esteja longe de ser perfeito, apoia vários destes especialistas.
Há muito ainda a fazer, mas qualquer boa casa começa com boas fundações. E qualquer campo de conhecimento biológico, antes de produzir conhecimento preditivo, tem de ter as fundações do conhecimento descritivo. E estas seriam descobrir que espécies temos e saber onde estão. O que se traduz em termos basicamente alguém a ser apoiado para descrever as espécies do nosso país que nunca foram descritas pela ciência, e a executar trabalho de campo para saber onde e quando essas e outras espécies ocorrem.
Este tipo de informação pode parecer de pouco valor, ou de interesse secundário, mas é a base que nos permite saber quão ameaçadas estão as nossas espécies, como as podemos proteger e quais são os impactos das alterações climáticas, que por sua vez nos poderão ajudar a prevenir os impactos em nós mesmos e nos recursos de que dependemos.
Essa informação também nos vai ajudar a produzir mais e melhor produtos agrícolas (sem recursos a pesticidas) e a descobrir novas substâncias, medicamentos mais eficazes ou melhores métodos de tratamento, que podem salvar vidas humanas. Sem esta base, todo este potencial se perde. Como uma biblioteca que arde sem que alguém tenha tido oportunidade de a ler.
[divider type=”thin”]Saiba mais.
Descubra as espécies de aranhas que já foram identificadas na Wilder e outras histórias sobre estes invertebrados ainda tão pouco conhecidos em Portugal, aqui.