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Foto: Helena Geraldes

Os 500.000 insetos do Museu Nacional de História Natural estão em mudanças, mas não é só de sala

07.03.2024

Cerca de meio milhão de abelhas, joaninhas, borboletas e outros espécimes guardados no Museu Nacional de História Natural e da Ciência, em Lisboa, estão a passar para novos armários e também a ser reorganizados, com a ajuda de voluntários. Roberto Keller, curador da coleção entomológica, explicou à Wilder o que se passa. 

Numa sala da velha entomoteca do Museu Nacional de História Natural e da Ciência (MUHNAC), estão arrumadas centenas de caixas entomológicas em velhos armários de madeira e estantes cinzentas de metal. E também por cima, quando não há mais espaço. Tal como o nome sugere, esta entomoteca assemelha-se a uma biblioteca, mas aqui em vez de livros guardam-se e consultam-se borboletas, escaravelhos e muitos outros espécimes conservados e guardados em caixas de tampa transparente.

Vista parcial de uma das salas da velha entomoteca. Foto: Helena Geraldes

Roberto Keller, curador da coleção de insetos do museu, guia-nos numa visita pelos acervos. Para já, o que vemos lembra-nos as bibliotecas que arrumam os livros por autores: cada caixa entomológica está junto às outras da pequena coleção a que pertence – uma espécie de sub-coleção, na verdade, associada ao nome da pessoa ou instituição que era dono daqueles espécimes antes de serem doados ao MUHNAC.

Têm sido essas doações – entre as quais a coleção Quartau e a coleção Bívar de Sousa, feitas por cientistas, e também algumas de entomologistas amadores – que ajudam a reconstituir o que se perdeu no grande incêndio que destruiu a reserva zoológica do museu, em 1978. Hoje, entre outros, os acervos de insetos incluem mais de 14.000 espécimes colecionados desde a década de 1930 pela Família Mendonça, outros 20.000 que pertenceram a António Bívar de Sousa, e ainda mais de 5000 borboletas e escaravelhos doados por Fernando Carvalho em Dezembro de 2023. Ali, desde 2020, moram também milhares de abelhas silvestres colecionadas por David Baldock.

Borboletas da coleção Pignatelli, uma das coleções nos acervos do Museu Nacional de História Natural. Foto: Helena Geraldes

Feitas as contas, Roberto Keller estima que cerca de meio milhão de insetos estão hoje guardados nas instalações da Rua da Escola Politécnica, incluindo cerca de 300.000 transferidos do antigo IICT-Instituto de Investigação Científica Tropical – a maior coleção de todas – e muitos outros milhares recolhidos por investigadores e funcionários ligados ao museu.

Palavra chave, “taxonomia”

Todos estes escaravelhos, abelhas e outros espécimes, que por falta de espaço têm andado dispersos por várias salas das reservas do MUHNAC, estão agora em mudanças para uma nova entomoteca inaugurada em Dezembro de 2023. “Esta entomoteca permite-nos, pela primeira vez, termos todas as coleções organizadas numa só reserva, incluindo a coleção do IICT”, afirma o curador, entusiasmado com o futuro.

E com efeito, o espaço onde entramos agora parece que cheira a novo. Os insetos que já foram transferidos parecem mais seguros, numa sala onde a temperatura e a humidade são automaticamente reguladas. “As gavetas antigas não fecham hermeticamente, mas estas sim”, aponta o curador, que mostra o interior dos armários brancos da nova entomoteca, protegidos por portas de metal. Até as pequenas caixas que separam os insetos em conjuntos, dentro das caixas entomológicas onde estão guardados, são feitas de “papel livre de ácidos”, explica.

Armários da nova entomoteca do MUHNAC, inaugurada em Dezembro de 2023. Foto: Helena Geraldes

Ainda assim, toda a mudança vai demorar tempo, num trabalho que deverá continuar com os futuros curadores. É que a equipa liderada por Roberto Keller não está apenas a transferir tudo para o novo espaço. Ao mesmo tempo, está a alterar o sistema de organização e a dar-lhe uma lógica completamente nova: em vez de continuarem arrumados em caixas entomológicas com o nome de quem os colecionou, estes milhares de insetos vão ficar arrumados por famílias e géneros.

Como assim? “A palavra chave é ‘taxonomia’, que é a ciência que estuda a delimitação das espécies e as suas relações de parentesco evolutivo, assim como as suas características morfológicas, fisiológicas e genéticas, com o fim de propor um sistema de classificação natural”, indica o curador. “Queremos organizar as coleções consoante este sistema de classificação, que resulta dos estudos taxonómicos.”

Roberto Keller, curador da coleção entomológica do MUHNAC. Foto: Helena Geraldes

Assim, por exemplo, em vez de continuarem numa caixa entomológica da coleção Fernando Carvalho, as borboletas de asas azuis que este naturalista coletou em Portugal vão ficar arrumadas numa nova caixa, junto de outras do mesmo género ou da mesma família, as Lycaenidae. Para que ninguém se esqueça de onde vieram, no catálogo do museu vão manter a referência à coleção doada por este engenheiro civil. Cada inseto vai conservar igualmente a sua pequena etiqueta original, quando a tiver, que costuma indicar qual é a espécie (se estiver identificada), o local e data em que foi coletado e por quem.

Material utilizado na arrumação das caixas entomológicas, no MUHNAC. Foto: Helena Geraldes

Um dos grandes objetivos de toda esta rearrumação é tornar milhares de insetos mais acessíveis ao trabalho científico. “Se um investigador chegar e quiser estudar as borboletas de um determinado grupo, só podemos disponibilizar esses materiais depois de catalogar e organizar os insetos segundo a taxonomia”, explica Roberto Keller, que lembra que as coleções entomológicas são essenciais para a investigação nesta área.

“Numa determinada espécie ou género taxonómico, quando temos acesso a indivíduos de populações de locais diferentes, podemos estudar as diferenças morfológicas e comparar o DNA”, exemplifica, sublinhando que “o que sabemos sobre a maioria dos insetos deve-se ao facto de termos esses exemplares numa coleção.”

Voluntários fazem “trabalho minucioso

Ao mesmo tempo que são rearrumados, todos os espécimes que passam para as novas gavetas estão a ser digitalizados – tanto as fotografias como os dados associados – dando continuidade a um trabalho que já tinha começado em 2014. O objetivo é ficarem inseridos numa nova base de dados do museu, que se espera que fique acessível ao público no início de 2025, adianta o curador. Além das velhas etiquetas, as abelhas e outros insetos que já passaram por este processo têm agora um pequenino papel com um ‘qrcode’, que os liga ao catálogo virtual e remete também para a geo-referenciação do local onde terão sido apanhados. Afinal, são estes dados que mapeiam diferentes espécies no espaço e no tempo e permitem comparações com o que se passa hoje. “Desta forma sabemos que determinada espécie existia ali, numa determinada altura, e agora já não. Ou ao contrário, devido às alterações climáticas.”

Abelhões preparados para serem transferidos para a nova entomoteca, alguns com o novo ‘qrcode’ visível por baixo. Foto: Helena Geraldes

“Muito deste trabalho tão minucioso é feito por voluntários que só podem dar uma parte do seu tempo”, acrescenta Roberto Keller, que admite a falta de mais recursos humanos a tempo inteiro. Ainda assim “não há pressas”, pois trata-se de um projeto “que tem de ser feito ao ritmo que é necessário”, com tempo e atenção quanto baste. “Este é um trabalho para durar décadas.”

Voluntária a trabalhar na digitalização e reorganização da coleção de insetos do MUHNAC. Foto: Roberto Keller

Por estes dias, tarefas não faltam. Os voluntários que trabalham com a coleção entomológica fotografam inseto a inseto, passam para o computador todos os dados e registos associados e reorganizam os espécimes para a nova entomoteca, já por grupos taxonómicos. É preciso também voltar a rever os nomes científicos das espécies, pois a taxonomia muda, e fazer trabalho de investigação histórica, decifrando registos já antigos que contêm localidades difíceis de identificar, pois os termos antigos caíram em desuso.

A atual equipa conta com seis voluntários, incluindo estudantes de biologia e ainda uma bióloga e uma agente de viagens já reformadas. Por enquanto, no total, há 51.000 espécimes já digitalizados e reorganizados.

Duas voluntárias trabalham na digitalização dos insetos. Foto: Roberto Keller

“Como nas faculdades não têm treino com coleções, muitos biólogos vêm para aqui trabalhar”, explica o curador, que nota que em Portugal “há um ‘gap’ geracional de pessoas interessadas em taxonomia”. Embora sinta que essa tendência está a mudar, isso traduz-se na “falta de pessoal para inventariar a diversidade e trabalhar com as coleções” – necessidades que estão a crescer devido à crise da biodiversidade.

É possível visitar a coleção de insetos?

Roberto Keller explica que sim, mas tem de ser por marcação. “Temos por exemplo muitos ilustradores que pedem uma visita à coleção entomológica, para o seu trabalho, mas também é possível para pessoas que a queiram consultar só por gosto.” Além do mais, por vezes também o museu organiza visitas guiadas, normalmente durante a semana.

Voluntária a trabalhar com insetos do MUHNAC, acompanhada por um visitante. Foto: Roberto Keller

Quanto aos voluntários, o MUHNAC tem um programa de voluntariado para trabalhos em todo o museu e também nos dois jardins botânicos sob a tutela da Universidade de Lisboa, para o qual abre periodicamente novas inscrições. As vagas relativas à coleção entomológica estão neste momento preenchidas, mas Roberto Keller acredita que dentro de alguns meses, “lá para Setembro”, surjam oportunidades para quem tiver interesse.

Entretanto, dia após dia, toda esta pequena equipa está a contribuir para as mudanças na coleção, sempre com o objetivo de “preservar, catalogar, disponibilizar para consulta” – uma pequena revolução para cerca de meio milhão de insetos que, acreditam, será importante para o aumento do conhecimento científico e a futura conservação de espécies ameaçadas, em Portugal.


Agora é a sua vez.

Se tiver interesse em conhecer a coleção de insetos do MUHNAC, no dia 13 de Março à tarde haverá uma visita guiada pelo curador Roberto Keller. Basta aparecer e comprar o bilhete de visita ao museu. Saiba mais aqui. Para outros pedidos de consulta, tem outras opções.

Inês Sequeira

Foi com a vontade de decifrar o que me rodeia e de “traduzir” o mundo que me formei como jornalista e que estou, desde 2022, a fazer um mestrado em Comunicação de Ciência pela Universidade Nova. Comecei a trabalhar em 1998 na secção de Economia do jornal Público, onde estive 14 anos. Fui também colaboradora do Jornal de Negócios e da Lusa. Juntamente com a Helena Geraldes e a Joana Bourgard, ajudei em 2015 a fundar a Wilder, onde finalmente me sinto como “peixe na água”. Aqui escrevo sobre plantas, animais, espécies comuns e raras, descobertas científicas, projectos de conservação, políticas ambientais e pessoas apaixonadas por natureza. Aprendo e partilho algo novo todos os dias.

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