Nos últimos anos tem sido feito um “esforço hercúleo” para colmatar a falta de informação sobre a ecologia da megafauna marinha em Portugal. A Wilder falou com os investigadores que estão no terreno a testar novas tecnologias para acompanhar a vida destes gigantes marinhos nos Açores e Madeira.
Portugal tem algumas das espécies de megafauna mais icónicas, desde baleias e golfinhos, tubarões e focas às mantas, espadartes ou tartarugas. Quem o diz são os investigadores Filipe Alves, Marc Fernandez e Rita Ferreira do MARE – Marine and Environmental Sciences Centre / ARDITI (Agência Regional para o Desenvolvimento da Investigação, Tecnologia e Inovação).
Estes animais tiram proveito de “habitats tão diversos como estuários e planícies abissais”, numa das maiores Zonas Económicas Exclusivas (ZEE) da Europa.
“Para algumas espécies, as águas portuguesas constituem mesmo um habitat vital. Apesar da regulamentação nacional e internacional existente, faltam ainda planos específicos de conservação e algumas espécies (de tubarões e tartarugas) encontram-se vulneráveis a várias pressões antropogénicas. A mais recente expansão da Reserva das Selvagens foi uma óptima notícia para a recuperação destas espécies marinhas, dado que já foi demonstrado por muitos estudos científicos os efeitos positivos que as reservas integrais causam no ecossistema”, salientaram à Wilder.
Mas pouco se sabe sobre a sua ecologia.
“Muitas das espécies de megafauna marinha são animais com grande mobilidade, que passam grande parte do tempo submersos e que se movem em águas longe de costa”, explicaram os investigadores.
“Isto representa desafios financeiros e logíticos complexos. Como normalmente recolhemos dados de uma pequena fração da vida destes animais, acabam por existir mais perguntas que respostas. Isto é especialmente gravoso quando se trata de espécies ameaçadas, pois ao não sabermos o que está por exemplo a causar o seu declínio, não conseguimos estabelecer um plano de acção para a sua conservação. É por isso que é de extrema importância a conjugação de esforços entre equipas de vários domínios científicos e que se implementem programas financeiros com visão a longo prazo, com a criação de bases de dados partilhas/abertas e na fixação de equipas.”
É precisamente o que tem vindo a acontecer nos últimos anos.
“Tem havido um esforço hercúleo no sentido de colmatar a falta de informação sobre a ecologia da megafauna marinha em Portugal que, até há duas décadas, tinha incidido principalmente sobre a descrição de novas espécies/registos e sobre a biologia destes animais.”
Parte desse esforço está na mão de investigadores como Filipe Alves, Marc Fernandez e Rita Ferreira, profundamente envolvidos nos projectos Whale Tales Project e INTERTAGUA, através do MARE (ARDITI, laboratório associado ARNET, e Observatório Oceânico da Madeira).
O Whale Tales Project dedica-se ao estudo do cachalote (Physeter macrocephalus) na Madeira, espécie classificada como Vulnerável naquele arquipélago da Madeira, região onde existe pouca informação sobre a utilização de habitat por esta espécie, em especial os seus padrões de movimento e as dinâmicas populacionais.
“Os cachalotes são mergulhadores profundos, ou seja, passam a grande maioria do seu tempo a grandes profundidades a procurar o seu alimento preferido – as lulas gigantes. Estas grandes profundidades ocorrem, normalmente, um pouco mais longe de costa, que por vezes é longe demais para serem avistados. Além disto, são animais cujas movimentações diárias podem atingir vários quilómetros, pelo que não são uma espécie fácil de ver frequentemente e de seguir ao longo de vários dias. Como tal, são necessários muitas horas passadas no mar a recolher dados para se conseguir obter informação científica válida”, explicaram os investigadores.
Este projecto – que em Novembro de 2018 recebeu 50.000 euros da 2ª edição do Fundo para a Conservação dos Oceanos, pelo Oceanário de Lisboa e pela Fundação Oceano Azul – está a estudar os movimentos dos cachalotes na Madeira, tentando perceber se estes grandes animais têm áreas de preferência e padrões de residência, por exemplo.
Para isso, os investigadores estão a usar biomarcadores de satélite minimamente invasivos (LIMPET – Low Impact Minimally Percutaneous Electronic Transmitter – tags).
“Tentou-se inovar o sistema de colocação de transmissores de satélite, dado que os transmissores mais comumente utilizados noutras regiões permaneciam relativamente pouco tempo nos indivíduos marcados”, segundo os investigadores.
“Foram colocados três transmissores de satélite na Madeira, que não foram bem-sucedidos a nível de longa duração, pelo que será necessário continuar a inovar e a trabalhar em conjunto com outras equipas no sentido de encontrar uma metodologia mais adequada.” Existem no mercado biomarcadores de satélite transdérmicos mas optou-se por não usá-los pois são muito invasivos.
Este projecto utiliza diversas metodologias inovadoras, de modo a obter a maior informação possível sobre o cachalote.
De momento, os investigadores usam telemetria de satélite para saber informação sobre movimentos e utilização de habitat e fazem a recolha de biópsias (pequena amostra de pele e gordura) para estudar parâmetros fisiológicos e ecotoxicológicos, assim como o estado de saúde da população. Estes trabalhos continuam a decorrer neste momento, com colaborações com outras equipas internacionais.
Além disso está a ser feita a “foto-identificação, que permite reconhecer cada indivíduo através de fotografias da barbatana caudal. Uma das maiores vantagens desta técnica é que as fotos podem ser recolhidas por qualquer pessoa, tais como turistas ou operadores de whale-watching, e permitem assim não só uma maior recolha de dados, mas também a participação dos cidadãos na ciência – a chamada citizen-science“.
Na verdade, “a colaboração com os operadores de whale-watching tem sido de grande importância, não apenas pelas fotografias que nos cedem mas também por recolherem amostras de pele (os cachalotes libertam frequentemente pele “antiga”, que pode ser usada para análises) e restos de lulas encontrados a flutuar”.
Para já, o Whale Tales Project “possibilitou identificarmos a Madeira como uma área muito importante para a população de cachalotes do Atlântico Norte, juntamente com os Açores, sendo que um quarto da população (25%) utiliza estas ilhas de modo recorrente ao longo de vários anos; registámos já um máximo de 8 anos na Madeira”.
De momento está a decorrer outro projecto, o INTERTAGUA (Deteção e Visualização da Megafauna Marinha Atlântica e Embarcações na Macaronésia usando Marcadores Rádio-transmissores), que abrange os Açores, a Madeira, Cabo Verde e Canárias.
“Um dos objetivos principais é na área da biotelemetria, nomeadamente na fabricação de marcas de seguimento remoto de baixo custo, quer para embarcações como para vida selvagem marinha”, explicaram.
Segundo os investigadores, “está a ser utilizada tecnologia IoT (Internet of Things) para a construção das marcas de seguimento de baixo custo. Uma das grandes novidades dos protótipos desenvolvidos é o uso do sistema de comunicação através de redes LORA, que permite comunicação a longas distâncias com um consumo mínimo de energia. Os dados são enviados para umas antenas na costa (Gateways) que conseguem receber informação num raio de 40 km, que os encaminham para servidores remotos. O uso desta tecnologia permitirá reduzir os custos operacionais associados à biotelemetria, especialmente quando comparado com os biomarcadores de satélite”.
Neste momento ainda não existe nenhuma marca desenhada pelo INTERTAGUA já colocada num animal ou embarcação. “Já foram realizados testes em embarcações no arquipélago da Madeira e ainda este ano serão realizados mais testes nas Canárias e nos Açores.”
Os investigadores adiantaram que durante Julho e Agosto deste ano serão colocados dois biomarcadores em tartarugas (nas Canárias e em Cabo Verde) e um num cachalote (nos Açores) como prova de funcionamento da tecnologia desenvolvida. “Quando finalizados os testes, uma ou mais tartarugas serão também marcadas na ilha da Madeira.”
Estes dois projectos são apenas uma amostra do que está a ser feito para conhecer a megafauna marinha dos Açores e da Madeira. O trabalho de investigação em curso nestes arquipélagos já chamou a atenção internacional e “tem contribuído para colocar a Madeira ‘no mapa’ da investigação da megafauna marinha. Contudo, existe ainda um longo caminho pela frente…”
Mais de sete mil pessoas, provenientes de mais de 140 países, com cerca de uma centena de delegações representadas a nível político, estarão em Lisboa nos próximos dias para participar na 2ª Conferência dos Oceanos da ONU.
A Conferência deverá aprovar a Declaração de Lisboa, um documento que realçará as áreas de atuação inovadoras e baseadas na ciência que permitam apoiar a concretização do ODS 14: conservar e utilizar de forma sustentável os oceanos, mares e recursos marinhos para o desenvolvimento sustentável.