Solta de Nara no Vale do Guadiana, em Maio de 2017. Foto: Helena Geraldes

Esforço de reintrodução de lince-ibérico vira-se para o Algarve

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A propósito da alteração do estatuto de ameaça do lince-ibérico, a Wilder falou com João Alves, do Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), sobre o que falta ainda fazer para consolidar o regresso deste felino a Portugal. O Algarve será a região prioritária para as futuras reintroduções no país e a monitorização e a ligação entre núcleos de lince são áreas de reforço. “O nosso compromisso para com o lince-ibérico é para continuar.”

Em Portugal viverão hoje, pelo menos, 288 linces-ibéricos (Lynx pardinus) na natureza. Em toda a Península Ibérica serão 2021 animais.

Cria de lince-ibérico. Foto: Programa de Conservação Ex-Situ

Na semana passada, a UICN anunciou que a espécie baixou o seu estatuto de ameaça, deixando de estar Em Perigo para passar a Vulnerável.

Mas apesar das boas notícias, as medidas de conservação mantêm-se.

“Termos conseguido, a nível ibérico, baixar o estatuto é o resultado de um trabalho longo que exige persistência e resistência. Mas a conservação do lince-ibérico é uma espécie de maratona que ainda não acabou”, disse à Wilder João Alves, coordenador do programa de reintrodução do lince-ibérico.

Esta “maratona” leva mais de 40 anos. João Alves lembrou alguns pontos chave como a campanha Salvem o Lince e a Serra da Malcata, que decorreu em 1979 e 1980, os seminários do final dos anos 90 que juntaram técnicos portugueses e espanhóis para debaterem a sobrevivência do lince e também o acordo de entendimento entre os dois países, celebrado a 31 de Agosto de 2007, para a cedência de animais para o Programa de Reprodução em Cativeiro do Lince Ibérico. E como em 2010 Portugal passou a ser país reprodutor de linces e em Dezembro de 2014 foi instalado o primeiro casal de linces num cercado de solta branda, em Mértola. E como a partir de 2016 começou a reprodução da espécie em liberdade.

“O território foi bem escolhido. Tinha muito coelho e o lince foi bem acolhido pela população (…). Felizmente, a população tem vindo a crescer”, comentou.

Lince-ibérico. Foto: Programa de Conservação Ex-Situ do Lince-Ibérico

Contudo, sublinhou este responsável, o estatuto do lince-ibérico ainda se mantém Em Perigo em Portugal. “O estatuto a nível ibérico é agora Vulnerável. Mas a nível nacional, a mais recente avaliação feita no âmbito do Livro Vermelho dos Mamíferos ainda não desceu a espécie Em Perigo. A quantidade de linces, menos de 300, ainda não permitiu baixar para Vulnerável. Talvez na próxima revisão do Livro Vermelho isso possa acontecer”, acrescentou.

“A meta ibérica, que é a única que faz sentido, é chegar a ter entre 750 a 900 fêmeas reprodutoras territoriais para o lince baixar para uma conservação favorável.”

Para que isso aconteça, o compromisso para com esta espécie mantém-se. “O lince vai continuar a ser prioridade, até por causa das obrigações comunitárias, do compromisso a nível ibérico e da estratégia nacional de conservação.”

As reintroduções de linces, para reforçar as populações selvagens, vão continuar. Mas o foco deixará de ser o Vale do Guadiana, que estará perto de atingir a capacidade de carga com mais de 240 animais.

“As próximas reintroduções de lince, que acontecerão entre Fevereiro e Março de 2025, deverão ocorrer no Algarve”, uma vez que as zonas de Alcoutim e Castro Marim ainda poderão acolher mais animais. Nesta região existiam em 2023 cerca de 40 linces, dos quais sete eram fêmeas reprodutoras. A população algarvia tem vindo a crescer (35% em relação a 2022) e a expandir-se para Sul, atingido o seu limite na envolvente da barragem de Odeleite, onde existe uma fêmea reprodutora.

E, apesar de algumas oscilações, “este tem sido um ano positivo para o coelho-bravo (a presa preferida do lince-ibérico)”. “Os pastos mantiveram-se verdes no Vale do Guadiana e em Alcoutim”, por exemplo.

Segundo João Alves, as equipas no terreno vão passar a fazer uma gestão mais qualitativa dos núcleos de lince, à medida que as populações na natureza se vão tornando auto-sustentáveis. Ou seja, uma questão crucial é garantir a maior diversidade genética possível, evitando a consanguinidade. “A nível ex-situ, na rede de centros de reprodução em cativeiro, conseguimos controlar quem acasala com quem”, salientou. A equipa ibérica decide quais são os casais para cada temporada reprodutora com base em vários critérios, um dos quais a genética.

Foto: Programa de Conservação Ex-situ/Arquivo

“Ora, no campo, não conseguimos fazer esse controlo. Assim, precisamos de fazer uma gestão qualitativa, ou seja, retirar um ou dois machos que já se tenham reproduzido em excesso e colocar outro macho”, translocando linces entre populações. “Recentemente definimos o último protocolo técnico de translocações, com as orientações e regras a seguir. Não queremos interferir negativamente nas populações, queremos fazer tudo com segurança.”

“Temos de continuar a intervir sempre que necessário, mas claro que haverá uma gradução progressiva para aliviar o esforço, à medida que a população for sendo mais auto-sustentável.”

Reprodutores em reserva

O Centro Nacional de Reprodução do Lince-ibérico (CNRLI), na Herdade das Santinhas, Silves, “terá sempre de ter linces reprodutores em reserva”. “O CNRLI tem de continuar a reproduzir linces, para fazermos uma gestão qualitativa no terreno, tendo em conta o compromisso com Espanha e a nível comunitário.”

Para isso acontecer, todavia, é preciso acompanhar de perto a evolução dos linces no território. Onde estão, quantos são, que riscos correm e se têm alimento disponível.

Para tal, a equipa recorre à tecnologia, nomeadamente equipando linces com colares com o inovador sistema LoRa. “Esta técnica é importante para se determinar dimensões de territórios, causas de mortalidade, relações entre indivíduos, seleção de habitat, definição de corredores de dispersão e impactos resultantes do tráfego das estradas”, explicou anteriormente à Wilder Pedro Sarmento, coordenador e responsável técnico do programa in situ para o lince-ibérico. “A ligação experimental do sinal dos emissores LoRa à aplicação Waze tem servido para avisar os condutores para a proximidade a determinadas vias de comunicação de linces marcados – EN 122, EN 123, EN 267 e IC 27.”

Neste momento existem 25 linces marcados com colares LoRa. “Mas não chega, temos de ter mais”, disse João Alves. As equipas no terreno querem instalar mais câmaras de foto-armadilhagem, “para conseguir informação mais segura”, e colocar mais colares LoRa em linces.

Outra novidade é a aposta na possibilidade de usar Inteligência Artificial para ajudar a identificar imagens de lince de entre os largos milhares de fotografias geradas pelas câmaras de foto-armadilhagem. Isto revela-se importante para, por exemplo, estimar quantas crias nasceram em cada temporada reprodutora no campo. “Neste momento, a equipa está a visualizar milhares de fotografias das câmaras de fotoarmadilhagem” para tentar saber quantas crias nasceram nesta Primavera.

Foto: Programa de Conservação Ex-Situ do Lince-Ibérico

Nova área para o lince

Ao mesmo tempo prosseguem outros trabalhos, principalmente a identificação de uma segunda área de reintrodução de lince-ibérico em Portugal, no âmbito do projecto em curso LIFE LynxConnect, e que termina em Setembro de 2025. “Este é um trabalho que ainda está a ser feito. Poderá ser na Serra do Caldeirão, ou em São Mamede, ou na Malcata, se tiver muito coelho, algo que ainda não acontece. Vai ser crucial haver coelho-bravo e habitat de qualidade suficientemente extenso”, adiantou.

O grande objectivo do LynxConnect é “estabelecer a conectividade entre as populações recriadas no âmbito dos LIFE anteriores, no Iberlince. Promover uma conexão entre núcleos e fomentar que os animais se desloquem, para evitar o aumento da consanguinidade”.

Outra razão são as alterações climáticas. “As alterações climáticas vão acabar por interferir” na conservação do lince-ibérico, considerou João Alves. “A grande interrogação será com que rapidez e intensidade. Penso que não será a muito curto prazo. Mas obrigam-nos a estar mais atentos e a não descurar a monitorização.”

A revisão do PACLIP (Plano de Ação para a Conservação do Lince-ibérico) – que terminou em 2020 e que traça a evolução dos trabalhos em cinco áreas: conservação ex-situ, conservação in-situ, comunicação, investigação e medidas de política – , é outra etapa nesta “maratona” que é a recuperação do lince. “Houve um PACLIP em 2008, que foi revisto em 2015. Actualmente está em revisão o PACLIP 2024-2030. Julgo que seja preciso apenas mais uma reunião da comissão executiva, que reúne mais de 20 entidades, entre ONGA, agricultores, caçadores e academia”, entre outras entidades.

“O esforço de reintroduzir e recuperar a população de lince em Portugal é uma espécie de maratona, é preciso resistência. Passámos por vários governos, por várias direcções do ICNF; nem sempre os técnicos têm as condições para monitorizar o lince. Por vezes tivemos dificuldade até para adquirir cartões de memória para as câmaras de fotoarmadilhagem. Mas são muitas pessoas a trabalhar e vamos continuar a fazê-lo”.

Helena Geraldes

Sou jornalista de Natureza na revista Wilder. Escrevo sobre Ambiente e Biodiversidade desde 1998 e trabalhei nas redacções da revista Fórum Ambiente e do jornal PÚBLICO. Neste último estive 13 anos à frente do site de Ambiente deste diário, o Ecosfera. Em 2015 lancei a Wilder, com as minhas colegas jornalistas Inês Sequeira e Joana Bourgard, para dar voz a quem se dedica a proteger ou a estudar a natureza mas também às espécies raras, ameaçadas ou àquelas de que (quase) ninguém fala. Na verdade, isso é algo que quero fazer desde que ainda em criança vi um documentário de vida selvagem que passava aos domingos na televisão e que me fez decidir o rumo que queria seguir. Já lá vão uns anos, portanto. Desde então tenho-me dedicado a escrever sobre linces, morcegos, abutres, peixes mas também sobre conservacionistas e cidadãos apaixonados pela natureza, que querem fazer parte de uma comunidade. Trabalho todos os dias para que a Wilder seja esse lugar no mundo.

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