Foto: Susana Cunha

Entrevista: “Conhecemos menos de 10% das espécies de fungos que se estima existirem”

28.03.2025

Susana Gonçalves e Susana Cunha dedicam-se ao estudo dos cogumelos e dos fungos. Falaram com a Wilder a propósito do risco de extinção destas espécies, agora atualizado pela UICN, e da urgência de conhecermos melhor este grupo negligenciado.

O número de espécies de fungos avaliadas pela Lista Vermelha de Espécies Ameaçadas, coordenada pela União Internacional para a Conservação da Natureza (UICN), tem vindo a crescer a bom ritmo, mas ainda há muito por fazer, asseguram Susana Gonçalves e Susana Cunha, numa entrevista escrita à Wilder. “Apesar do marco importante alcançado nesta atualização, menos de 1% das espécies de fungos conhecidas foram avaliadas”, avisam estas duas avaliadoras de fungos para a UICN.

Portugal não foge à regra por falta de mais estudos abrangentes, uma vez que “não se sabe ao certo quantos fungos” existem no país. Das espécies já observadas em território português, 19 são consideradas ameaçadas a nível global.

WILDER: Até que ponto se conhece hoje a situação dos fungos a nível mundial, comparando com o que se passava há 5 anos? 

Susana Gonçalves e Susana Cunha: A situação tem mudado rapidamente. Até 2019 havia apenas 61 espécies de fungos cujo risco de extinção tinha sido avaliado. Em 2019 foram adicionadas 204 espécies à Lista Vermelha elevando o total para 265. Desde então, o número de espécies avaliadas aumentou exponencialmente. Em 2022 ultrapassámos as 500 espécies o que permitiu, pela primeira vez, fazer a primeira análise das ameaças que os fungos enfrentam. A perda/degradação do habitat, seguida das alterações climáticas, das espécies invasoras e da poluição, foram as principais ameaças identificadas.

Cogumelo gaiola-de-bruxa (Clathrus ruber). Foto: Susana Cunha

W: E em linhas gerais, porque é o conhecimento sobre este grupo importante, quando ainda há tanto por conhecer relativamente a outras espécies, tanto plantas como animais?

Susana Gonçalves e Susana Cunha: Os fungos são seres imprescindíveis para a vida na Terra. São os principais organismos decompositores, estão na base de cadeias alimentares e estabelecem importantes relações mutualísticas com outros organismos. São também um recurso natural valioso para os seres humanos, com aplicações que vão desde a alimentação à produção de medicamentos. 

Nem plantas, nem animais, os fungos são classificados no seu próprio reino e são o segundo maior grupo de organismos vivos, só ultrapassado pelos animais invertebrados. Apesar disso, e da sua reconhecida importância, os fungos continuam a ser profundamente negligenciados. Conhecemos menos de 10% das 2,5 milhões de espécies de fungos que se estima existirem e, por isso, arriscamo-nos a perder espécies que ainda nem sequer estudámos.

Cogumelo. Foto: Susana Cunha

Quando perdemos uma espécie perdemos também a oportunidade de explorar o seu potencial para solucionar desafios globais, como seja ajudar a sequestrar carbono no solo, produzir novos biomateriais ou remediar áreas contaminadas. Não proteger os fungos significa não proteger o papel que estes desempenham nos nossos ecossistemas e na nossa vida quotidiana.

Embora ainda existam lacunas de conhecimento em relação ao estado de conservação de muitas espécies de animais e plantas, o desconhecimento que existe sobre os fungos é muitissimo maior. É urgente adotar uma visão mais integrada da proteção da biodiversidade macroscópica da Terra, composta pela fauna, flora e funga!

Cogumelos. Foto: Susana Cunha

W: Restam ainda muitas espécies de fungos por avaliar pela Lista Vermelha? E quais são as mais prioritárias?

Susana Gonçalves e Susana Cunha: Apesar do marco importante alcançado nesta atualização, menos de 1 % das espécies de fungos conhecidas foram avaliadas. Precisamos urgentemente de avaliações de mais espécies para conseguirmos identificar as ameaças que os fungos enfrentam e, assim, os conseguirmos proteger. 

As espécies que, à partida, sabemos ter maior probabilidade de estar ameaçadas são geralmente consideradas prioritárias. É o caso de espécies que ocorrem em habitats que sabemos estar em declínio acentuado globalmente. No entanto, há outros critérios igualmente relevantes, como o caso das espécies que ocupam ramos isolados na árvore da vida e cuja extinção representaria uma perda significativa de história e potencial evolutivo.

Boleto Alessioporus ichnusanus. Foto: Susana C. Gonçalves

W: Quanto aos fungos conhecidos para Portugal, quantas dessas espécies estão avaliadas pela IUCN? 

Susana Gonçalves e Susana Cunha: Não se sabe ao certo quantas espécies de fungos existem em Portugal, já que faltam estudos mais abrangentes sobre a nossa diversidade. Ainda assim, sabemos que pelo menos 129 das espécies avaliadas globalmente ocorrem em Portugal, 19 das quais estão ameaçadas. No entanto é possível que este número seja mais elevado, devido à escassez de registos. É o caso de Microglossum atropurpureum, uma espécie classificada como “Vulnerável” sem registos em Portugal à data da sua avaliação, mas que foi identificada desde então no nosso território. 

W: Quais são as principais ameaças no nosso país? Existem exemplos concretos?

Susana Gonçalves e Susana Cunha: As principais ameaças para os fungos são a perda e a degradação dos seus habitats, nomeadamente por desflorestação e expansão urbanística. Em Portugal, em particular, a conversão de floresta nativa em plantações de árvores exóticas, a expansão de plantas invasoras e o aumento da frequência e intensidade dos fogos florestais, agravados pelas alterações climáticas, constituem ameaças importantes às nossas espécies de fungos. 

Como em Portugal não existe uma Lista Vermelha nacional de fungos, é difícil dar exemplos concretos de ameaças a espécies, mas é fácil reconhecer a situação nacional nas ameaças globais para algumas espécies “VU” (Vulneráveis) que ocorrem no nosso país:

Alessioporus ichnusanus é uma espécie de fungo ectomicorrízico com distribuição confinada à região mediterrânica europeia. Cresce em florestas puras ou mistas de carvalhos de folha perene e de folha caduca. A população, estimada em apenas 8400 indivíduos maduros, sofreu uma redução, que continuará no futuro, dado que as principais ameaças são os incêndios, o abate de árvores e o corte de madeira, bem como a degradação do habitat devido a atividades humanas.

Línguas da terra Microglossum atropurpureum. Foto: Susana Cunha

Cyanoboletus poikilochromus ocorre nas regiões da Europa e da Ásia Ocidental da bacia do Mediterrâneo, onde se associa a árvores da famíla das Fagaceae, principalmente carvalhos, estabelecendo ectomicorrizas. É uma espécie rara, com uma pequena população em declínio contínuo devido à redução e degradação do habitat, que irá provavelmente aumentar no futuro devido às ameaças e pressões sobre as florestas mediterrânicas.


Susana Gonçalves é coordenadora do MyCoLAB, laboratório dedicado ao conhecimento científico e à conservação dos fungos. Conheça aqui o seu lado de ecóloga.

Susana Cunha é estudante de doutoramento no MyCoLAB (CFE) e nos Royal Botanic Gardens, Kew.


Saiba mais.

Tanto a língua da terra Microglossum atropurpureum como o boleto Alessioporus ichnusanus foram registados pela primeira vez em Portugal, nos arredores de Coimbra, no âmbito do projeto de ciência cidadã “Fungos na Cidade”. Saiba mais sobre este projeto neste artigo publicado pela Wilder em 2022.

Conheça todos os fungos e cogumelos identificados no consultório Que Espécie é Esta. E recorde que medidas pode tomar para assegurar a diversidade destas espécies (e porque é isso importante).

Inês Sequeira

Foi com a vontade de decifrar o que me rodeia e de “traduzir” o mundo que me formei como jornalista e que estou, desde 2022, a fazer um mestrado em Comunicação de Ciência pela Universidade Nova. Comecei a trabalhar em 1998 na secção de Economia do jornal Público, onde estive 14 anos. Fui também colaboradora do Jornal de Negócios e da Lusa. Juntamente com a Helena Geraldes e a Joana Bourgard, ajudei em 2015 a fundar a Wilder, onde finalmente me sinto como “peixe na água”. Aqui escrevo sobre plantas, animais, espécies comuns e raras, descobertas científicas, projectos de conservação, políticas ambientais e pessoas apaixonadas por natureza. Aprendo e partilho algo novo todos os dias.

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