Foi por causa dos seres humanos que Asa Negra chegou ao Rias – Centro de Recuperação e Investigação de Animais Selvagens da Ria Formosa, em Olhão. Depois de várias semanas num recinto fechado, esta gaivota adulta está pronta para voltar a ser um animal selvagem em liberdade.
Na primeira sala da casa que serve de hospital para o centro de recuperação, pede-se silêncio. Em várias caixas tapadas com toalhas estão gaivotas que, por algum motivo, precisam de estar resguardadas para recuperar. Dentro da transportadora encostada à janela, uma gaivota-d’asa-escura (Larus fuscus) adulta está a descansar.
Asa Negra e outra gaivota com quem partilha a transportadora podem ouvir, ao longe, outras aves da sua espécie e outras que estão a recuperar em grupo, dentro de dois recintos exteriores. Ao final do dia vão ser alimentadas à mão, anilhadas e libertadas.
Como é que Asa Negra chegou ao Rias?
A gaivota-d’asa-escura chegou ao Rias a 19 de setembro. Chegou de Portimão com um anzol de pesca preso no aparelho digestivo. Engoliu-o durante uma procura de alimento.
Maria Casero, diretora clínica do Rias, examinou a gaivota e tomou a decisão de extrair o anzol através do esófago. Depois de uma pequena intervenção, a Asa Escuraficou cerca de um mês em recuperação.
O Rias fica localizado dentro do Parque Natural da Ria Formosa, em Olhão. Fábia Azevedo, bióloga e coordenadora do Centro, explica que o Rias recebe, em média, 2.000 animais por ano, maioritariamente aves.
“Temos muitos que ingressam por doença”. A outra causa de ingresso mais comum é a interacção negativa entre os humanos e os animais, concretamente atropelamentos, electrocuções, colisões, abates a tiro e cativeiro ilegal.
Um exemplo desta última situação são os camaleões. “As pessoas acham piada e levam-nos para casa. Para além de ser ilegal, os animais não resistem ao frio, quando os levam mais para norte do País”. No caso dos mamíferos, também é comum. “Já recebemos raposas bebés entregues à trela, como se fossem cães”.
Uma gaivota que está vulnerável
Asa Negra recebeu este nome porque é uma gaivota-d’asa-escura. Ao contrário da sua parente, a gaivota de patas amarelas, é uma espécie migratória que vem passar o Inverno a Portugal. “Temos registo de gaivotas que foram libertadas aqui em Olhão e que depois foram avistadas na Islândia, em Inglaterra, na Holanda, em Marrocos”, refere a coordenadora do Rias.
“Há uma gaivota que libertámos em 2013 e todos os anos temos tido registos dela. Vai sempre nidificar a uma colónia na Holanda e no Inverno é vista cá, nas praias do Algarve. Já temos registo de cinco anos de vida desta ave. Para nós é espetacular sabermos que demos uma segunda oportunidade àquele animal.”
Apesar de não se encontrar numa má situação de conservação à escala mundial, a população encontrada no Sul de Portugal está a diminuir e já tem o estatuto de “vulnerável”. Contudo, é uma situação que passa despercebida, até para quem gosta de gaivotas, pois esta espécie é muito fisicamente parecida com o parente residente, a gaivota-de-patas-amarelas.
O facto de as espécies serem semelhantes não ajuda na conservação, pois se as pessoas não percebem a diferença, não sabem que algumas estão em risco, explica a bióloga. “Há um desconhecimento muito grande em Portugal em relação às gaivotas. Aqui no Algarve, no Inverno, conseguimos observar cerca de cinco, seis espécies na mesma praia”.
As gaivotas são animais territoriais e nidificam em colónias. Este aspeto do seu comportamento também pode ter impacto, pois quando a gaivota-de-patas-amarelas, que não migra, nidifica permanentemente num lugar, as outras ficam sem zonas para se estabelecerem.
Outra grande diferença entre estas duas espécies de gaivotas é a alimentação. Uma gaivota-de-patas-amarelas não tem problemas em comer alimentos como ração de animais de estimação ou restos deixados no lixo, mas a gaivota-d’asa-escura não o fará, indo exclusivamente ao mar procurar comida.
Fábia Azevedo afirma que o Homem está a ter impacto em todas as espécies selvagens, não apenas na de Asa Negra, devido ao crescente contacto entre os humanos e os animais, quando há construções nos habitats. “Para além disso, a falta de alimento é uma ameaça. Cada vez se pesca mais, cada vez se explora mais os recursos naturais que existem. Cada vez é mais difícil para as gaivotas alimentarem-se naturalmente nas praias”.
O contacto com materiais de pesca também é um problema. Como aconteceu com Asa Negra, chegam regularmente gaivotas com anzóis presos nos corpos ou com as patas e asas enroladas em redes e fios de pesca. “Chegam-nos muitas a que temos de amputar as patas, ou já mortas”.
Quanto a soluções, Fábia Azevedo refere que a redução do plástico e o evitar da destruição de habitat são o que as comunidades podem fazer, coletivamente, para resolver os problemas, assim como a interação educativa com os pescadores e o diminuir as lixeiras a céu aberto.
“Depois, existem locais sensíveis a que se deve evitar a perturbação das aves, especialmente na altura da nidificação”, nas áreas costeiras nacionais.
Voar em direção ao pôr-do-sol
Depois da última refeição dada por um humano, Asa Negra é colocada numa transportadora com mais quatro gaivotas. Algumas não estão nada contentes com a repentina partilha de um espaço apertado, mas rapidamente ficam quietas quando percebem que foram levantadas do chão.
Ana Catarina Alves e Inês Campos, estagiárias no centro, transportam os animais para fora do recinto do Rias. Vão libertá-las num dos caminhos que termina no parque de campismo. O céu já está cor-de-rosa, a anunciar o final do dia.
Ana Catarina inclina-se e abre a porta. Nos primeiros segundos, nenhuma das gaivotas se mexe. Mas depois, uma sai e olha em volta, como que a perguntar-se se está mesmo livre. Outra juvenil segue o exemplo e as duas começam a andar em frente, a analisar o espaço em volta. Asa Negra é a última a sair, abrindo a asas, como que para confirmar que pode voar sem ser de novo apanhada.
Com medo dos humanos que as rodeiam, todo o grupo de aves começa a correr. Para ajudar a perder a hesitação, Ana Catarina dá uma corrida na sua direção e o susto faz com que as aves levantem voo.