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Cinzentas ou ruivas? Cientistas portugueses desvendam mistério antigo sobre as fêmeas dos cucos

02.05.2024
Créditos: Inês Sena Cunha / @limbo_craft

Uma equipa internacional de investigadores recorreu a ferramentas de nova geração para estudar um problema que intriga a ciência há mais de 200 anos, relacionado com diferenças de cor.

Num estudo publicado na Science Advances, um consórcio internacional com mais de 30 cientistas, coliderado por investigadores do BIOPOLIS-CIBIO – Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos (Universidade do Porto), concluiu que as chamadas fêmeas “hepáticas” dos cucos, de cores arruivadas, sugiram pela primeira vez na Terra há mais de um milhão de anos.

Estas fêmeas do cuco-canoro-europeu (Cuculus canorus), diferentes das fêmeas acinzentadas da mesma espécie, foram batizadas de “cuco hepático” pelo naturalista sueco Anders Sparrman no final do século XVIII. Este discípulo do pai da taxonomia moderna, Lineu, considerou aliás essas aves ruivas tão diferentes que as catalogou como uma espécie autónoma.

“Ao longo dos séculos seguintes, tornou-se claro para os naturalistas que os cucos hepáticos eram apenas uma variedade colorida do cuco-canoro europeu, mas com uma particularidade: enquanto os machos de cuco são sempre cinzentos, as fêmeas podem ser cinzentas (semelhantes aos machos) ou ser da variante arruivada, apelidada ‘hepática'”, indica uma nota de imprensa divulgada pelo BIOPOLIS-CIBIO.


Duas fêmeas de cuco-canoro (Cuculus canorus). A fêmea da frente pertence à variante “hepática” e a fêmea de trás à variante “cinzenta”. Ilustração: Inês Sena Cunha / @limbo_craft

Ao longo do tempo, os observadores de cucos aperceberam-se também de que esta diferença de cores entre penas cinzentas e arruivadas estendia-se igualmente a outras espécies de cucos, mas sempre restrita às fêmeas.

Estas aves são desde há muito conhecidas pelo estilo de vida parasítico, que leva a que as fêmeas tenham apenas poucos segundos para deixar os ovos no ninho de outras espécies. O seu dorso cinzento e o padrão do peito lembram aves de rapina como o gavião, afugentando os guardiões dos ninhos e facilitando a sua tarefa.

Os cientistas têm-se por isso debatido com várias questões: qual é a razão para esta cor alternativa, porque é que apenas as fêmeas são variáveis, e porque é que tantas espécies de cucos mostram esta variação?

Em busca de respostas

“Começámos por estudar uma população de cucos da Hungria na qual as fêmeas hepáticas coexistem com fêmeas cinzentas,” lembrou Cristiana Marques, co-autora principal do estudo e aluna de doutoramento na Faculdade de Ciências da Universidade do Porto e no BIOPOLIS-CIBIO. Depois de descodificarem os genomas dos cucos, os cientistas encontraram algo estranho: “As fêmeas cinzentas e hepáticas têm um perfil genético idêntico, tão semelhante como qualquer vizinho. No entanto, quando olhamos para os cromossomas sexuais vimos que no cromossoma W, que é específico das fêmeas de aves, são tão diferentes que parecia estarmos perante duas espécies distintas”, explicou a investigadora, citada na nota de imprensa.

Penas de fêmeas de cuco-canoro (Cuculus canorus). A pena da esquerda pertence a uma fêmea da variante “cinzenta”, e a pena da direita a uma fêmea da variante hepática. Foto: Cristiana Marques

Será que outras espécies de cuco poderiam ajudar a resolver esta questão? Os investigadores concentraram então as atenções no cuco-oriental (Cuculus optatus), uma espécie asiática na qual as fêmeas também por vezes são da variante hepática.

Quando consideraram a informação genética das duas espécies, a origem das fêmeas hepáticas tornou-se finalmente mais clara: “Reconstruímos a árvore evolutiva destes cucos e descobrimos que, ao contrário do resto do genoma, no cromossoma W o parentesco é maior consoante a cor da fêmea”, acrescentou Pedro Andrade, investigador no BIOPOLIS-CIBIO.

“Ou seja, uma fêmea de cuco-canoro hepática tem um W mais semelhante ao de uma fêmea hepática de cuco-oriental, do que o da fêmea cinzenta da mesma espécie”, descreveu este co-autor do artigo. “Para chegar ao fundo da questão, testámos se esta partilha de variação ocorria devido ao acaso, por hibridação, ou se a variação era tão antiga que precedia as espécies atuais.”

Cuco-canoro. Foto: Ron Knight/WikiCommons

A equipa concluiu que “esta variação é, efetivamente, muito antiga”, e que a mutação que lhe deu origem terá acontecido “há cerca de um milhão de anos, antes do aparecimento do cuco-canoro e do cuco-oriental atuais, e tem sido passada geração após geração à medida que as espécies evoluíram”, acrescentou Cristiana Marques.

“No geral, os cucos parasíticos do género Cuculus terão evoluído no Velho Mundo (Afro-Eurásia)”, indicou a investigadora à Wilder. “A distribuição atual das espécies usadas no nosso estudo é bastante abrangente, com o cuco canoro a ocupar toda a Eurásia, enquanto o cuco oriental se distribui essencialmente no continente asiático. É muito provável que algures nesta região tenha habitado o ancestral de ambas as espécies, no entanto é dificil dizer ao certo a proveniência.”

Um relógio molecular

Para perceberem há quanto tempo as fêmeas cinzentas e arruivadas se tinham separado em duas variantes diferentes, os cientistas recorreram ao princípio do “relógio molecular”, esclareceu por sua vez Pedro Andrade. “Quando os pais passam o seu material genético aos filhos, ocorrem sempre alguns pequenos erros na cópia da informação, sendo assim que surgem as mutações genéticas”, descreveu.

O ritmo a que ocorrem estas mutações, de geração para geração, varia sempre um pouco, mas para cada espécie existe “um valor médio que podemos usar como referência”, explicou. “Por isso, se contabilizarmos as diferenças nas sequências de DNA de dois indivíduos, e se soubermos o ritmo ao qual o DNA acumula diferenças nessa espécie, podemos estimar há quantas gerações viveu o antepassado comum dos dois.”

Duas fêmeas de cuco-canoro (Cuculus canorus). A fêmea da frente pertence à variante “hepática” e a fêmea de trás à variante “cinzenta”. Ilustração: Inês Sena Cunha / @limbo_craft

O trabalho da equipa baseou-se num “relógio molecular” que foi recentemente estimado para as aves. Os resultados indicaram que, “para a maior parte da informação genética, o cuco-canoro e o cuco-oriental tiveram um antepassado comum há cerca de 50 mil gerações, ou seja, 140 mil anos, uma vez que o tempo de geração dos cucos está entre os dois e os três anos”, acrescentou Pedro Andrade. Foi ao compararem apenas o cromossoma W de fêmeas cinzentas e ruivas, recorrendo à mesma técnica, que os investigadores concluíram que essa variação já existia mesmo antes de surgirem as espécies atuais, numa ave que terá vivido há cerca de um milhão de anos.

Por vezes, é possível coexistir

De acordo com a equipa, este é um exemplo de como, por vezes, diferentes variedades da mesma característica podem ser vantajosas, em contraponto à visão mais clássica da evolução na qual uma variante se sobrepõe às outras e leva a mudanças nas populações ao longo do tempo.

De acordo com Miguel Carneiro, investigador principal no BIOPOLIS-CIBIO que coliderou o estudo, os resultados mostram também “como é que variação restrita a um sexo pode ser determinada pelos cromossomas sexuais, o que à primeira vista parece intuitivo, mas que surpreendentemente até agora tinha sido difícil de demonstrar”. Para os cucos, manter duas formas diferentes numa população poderá impedir os hospedeiros dos ninhos de aprenderem a distinguir as fêmeas das aves de rapina que mimetizam, salvaguardando dessa forma a espécie. 

Neste momento, o objetivo da equipa internacional é demonstrar se estas cores têm facilitado o estilo de vida parasítico dos cucos ao longo da sua evolução.


Saiba mais.

Recorde a crónica de Paulo Catry sobre a chegada do cuco-canoro a Portugal, no início de cada primavera. E releia os artigos da série “Está nos genes”, sobre algumas das mais recentes descobertas ligadas ao estudo do DNA, escrita na Wilder pelo investigador Pedro Andrade.

Inês Sequeira

Foi com a vontade de decifrar o que me rodeia e de “traduzir” o mundo que me formei como jornalista e que estou, desde 2022, a fazer um mestrado em Comunicação de Ciência pela Universidade Nova. Comecei a trabalhar em 1998 na secção de Economia do jornal Público, onde estive 14 anos. Fui também colaboradora do Jornal de Negócios e da Lusa. Juntamente com a Helena Geraldes e a Joana Bourgard, ajudei em 2015 a fundar a Wilder, onde finalmente me sinto como “peixe na água”. Aqui escrevo sobre plantas, animais, espécies comuns e raras, descobertas científicas, projectos de conservação, políticas ambientais e pessoas apaixonadas por natureza. Aprendo e partilho algo novo todos os dias.

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