Entrar numa floresta rica em árvores gigantescas e seculares causa admiração. Mas, no sub-coberto destas florestas, existe uma grande diversidade de outras espécies vegetais, também responsáveis por ambientes místicos e misteriosos. O feto-real (Osmunda regalis) é uma dessas espécies enigmáticas que facilmente nos transporta para uma viagem cheia de magia e fantasia.
Feto-real
O feto-real – também vulgarmente conhecido como afentos, fento-real ou fento-de-flor – pertence a uma família pequena, composta por quatro géneros botânicos e pouco mais de vinte espécies. A família Osmundaceae ocorre em quase todos os continentes, excepto na Antártida.
O género Osmunda é o mais representativo da família, com treze espécies distribuídas pela Europa, América, África e sul da Ásia, excluindo-se a Austrália.
Em Portugal a família Osmundaceae está representada apenas por uma espécie – o feto-real (Osmunda regalis), presente tanto em território continental como nos arquipélagos da Madeira e dos Açores.
O feto-real é uma planta perene, herbácea e rizomatosa, com um rizoma horizontal, grosso, curto e lenhoso, densamente revestido de remanescências de bases foliares, de onde partem as folhas e pode atingir até 2,5 metros de altura.
As folhas, também denominadas de frondes, formam densos tufos basais, são grandes, de cor verde a verde-amarelado. São recompostas e bipenatissectas, ou seja, com recortes muito profundos, até à nervura central. O limbo tem contorno ovado-lanceolado e o pecíolo, menor que o limbo, é curto ou por vezes inexistente, surge descoberto, sem pêlos, e é amarelado.
As frondes são caducas e podem ser observadas entre a primavera e o outono. Nascem enroladas sobre si próprias, desenrolando-se e abrindo-se à medida que se desenvolvem, formando um limbo grande e profundamente recortado.
O feto-real possui dimorfismo foliar, ou seja, possui frondes de dois tipos: as externas são estéreis e as internas são férteis.
As frondes estéreis são mais compridas e largas e podem atingir cerca de 1,6 metros de altura e 30 a 40 centímetros de largura e estão divididas em sete a treze pares de folíolos.
As férteis são eretas e mais baixas, medem até cerca de 50 centímetros de altura e são formadas por dois a três pares de folíolos estéreis na base e sete a catorze pares de folíolos férteis no topo. Em ambos os lados das frondes férteis formam-se os esporângios, que se reúnem em espessos agrupamentos de cor amarelada, designados de soros.
Os esporângios ocorrem apenas nas folhas férteis e possuem a função reprodutora.
São subglobosos, pedunculados, deiscentes e verdes. Quando atingem a fase de maturação tornam-se castanhos, abrindo-se para libertarem os esporos rugosos, também eles acastanhados.
Por causa da grande massa de esporângios que amadurecem uniformemente ao mesmo tempo, a parte terminal das frondes férteis apresenta uma cor vermelho-acastanhado e dourada, bastante vistosa, que a distingue facilmente das restantes partes, dando a ideia de que o feto parece estar em flor, daí o seu nome comum “fento-de-flor”.
A esporulação – formação dos esporos – ocorre durante a primavera e o verão.
São os esporos que, em condições ambientais favoráveis, dão origem a uma nova planta.
Entre a luz e a sombra
O feto-real é uma espécie nativa da Europa, Ásia e África, embora com larga distribuição mundial nas regiões temperadas e tropicais de todo o mundo, com exceção das ilhas do Pacífico e da Austrália.
Está presente em praticamente todas as regiões de Portugal, salvo nas regiões do interior alentejano. Ocorre também de forma nativa em todas as ilhas dos arquipélagos da Madeira e dos Açores.
O feto-real, para crescer e se desenvolver bem, requer a presença constante de água, sendo comum em galerias ribeirinhas, na margem de cursos de água, em locais húmidos e sombrios, preferencialmente em solos acidófilos. Também pode desenvolver-se sobre cascalho, fendas húmidas de rochas e no subcoberto de bosques caducifólios.
Esta planta tem preferência por locais de sombra ou semi-sombra, não sendo tolerante à luz solar direta, que lhe queima facilmente as folhas.
A nível edáfico tem preferência por solos férteis, frescos, húmidos e bem drenados, preferencialmente ácidos, embora seja tolerante a solo alcalinos. Também se desenvolve em solos lamacentos e pantanosos.
É uma planta tolerante ao frio e às geadas, podendo sobreviver a temperaturas de, pelo menos, -30ºc.
Infelizmente, a sua área de expansão natural tem sofrido um declínio acentuado nos últimos anos devido à redução das zonas húmidas em todo o mundo, como resultado da drenagem dessas áreas para a agricultura. Em algumas regiões da Europa corre mesmo o risco de extinção, devido à procura indiscriminada do solo onde estas plantas crescem, rico em raízes fibrosas, que constitui um bom “substrato” para o enraizamento de plantas epífitas.
Planta de tradições e usos históricos
O nome científico desta espécie é de proveniência incerta e poderá ter inúmeras e diferentes origens:
Alguns autores apontam que o nome do género Osmunda deriva do latim, da junção de dois termos:
- os + munda, que significam respetivamente “osso” e “cura”, muito provavelmente pelo uso das suas raízes e rizomas no tratamento do raquitismo;
- Outros sugerem que derivará da combinação dos termos os + mundae = “limpar”, porque esta planta também era usada para “limpar” os ossos;
- De Osmunder, o nome saxão do Deus Thor, Deus do trovão, filho de Odin, a quem a planta era dedicada;
- Ou ainda de Osmundus, nome pelo qual mestre rúnico viking Asmund Kareson era conhecido e que, no século XI, terá desempenhado um importante papel na aceitação do cristianismo na Escandinávia.
- Há quem aponte uma ligação a Osmund, governante anglo-saxão mencionado em 1765 como rei em Sussex, no sul de Inglaterra, ou pelo bispo Osmundus, que morreu em Salzburgo em 1099.
Já a origem do restritivo específico regalis é mais consensual. O termo regalis deriva do latim de rex, régis = “régio”, “real”, “majestoso pelo seu tamanho”, “de mérito excepcional”, “digno de um rei”.
O feto-real, assim como todos os fetos, sempre foi conhecido pelas inúmeras habilidades “mágicas”. De acordo com a mitologia eslava, as folhas férteis do feto-real são conhecidas como “flores de Perun”.
Perun era o Deus do raio e da tempestade do paganismo eslavo e as folhas do feto-real teriam poderes variados, como o da capacidade de expulsar demónios, realizar desejos, descobrir segredos e entender a linguagem das árvores.
Além disso, os rebentos do feto-real também já foram consumidos como alimento, que dizem ter um sabor semelhante ao dos aspargos. Na cozinha real coreana, por exemplo, são usados para preparar um prato chamado Namul.
A planta também tem usos medicinais. Dos rizomas e das frondes férteis são produzidas tisanas remineralizantes, tónicas, adstringentes e diuréticas.
Os rizomas, depois de secos e transformados em pó, são usados no tratamento de chagas e de feridas.
Também são conhecidas aplicações no tratamento de convulsões causadas por vermes intestinais, no tratamento da icterícia e no raquitismo em crianças.
As folhas são usadas para fazer compressas para serem aplicadas externamente em feridas e articulações reumáticas, para as quais são bastante eficazes.
É sempre bom recordar que o uso medicinal desta ou de outras plantas deve ser sempre acompanhado por um profissional de saúde.
O feto-real é também uma boa alternativa ornamental para qualquer jardim ou espaço verde. É uma ótima opção para crescer tanto em vasos e floreiras, como em canteiros, em locais frescos, sombrios e húmidos. É ideal para a cobertura de solo, no subcoberto de árvores e arbustos altos.
No entanto, também pode ser plantado em locais de sol pleno, desde que lhe seja garantida muita humidade no solo.
Como mencionado anteriormente, as raízes são a fonte da “fibra de Osmunda”, muito utilizada para o envasamento de orquídeas e de outras epífitas.
A evolução das espécies
A evolução das espécies vegetais é bastante complexa. A sua descoberta foi muito importante, pois as plantas tiveram um papel fundamental na formação de condições ambientais que possibilitaram o surgimento de formas de vida mais complexas.
As primeiras plantas a liderarem a colonização de ambientes terrestres foram os briófitos, plantas geralmente verdes e de pequenas dimensões, que englobam os musgos, hepáticas e antocerotas.
Estas plantas, reconhecidas como plantas não vasculares, não possuem tecidos condutores especializados que lhes permitam crescer em altura, estando portanto restritas a um crescimento reduzido.
Posteriormente surgiram as primeiras plantas a apresentarem tecidos vasculares, conhecidos como xilema e floema, que ajudam a distribuir os recursos (água, sais minerais e nutrientes) por toda a planta. Esta particularidade permitiu que as plantas evoluíssem para tamanhos maiores do que as plantas anteriores. As primeiras plantas vasculares foram os pteridófitos, também conhecidos como fetos.
Só mais tarde surgiram as primeiras plantas com sementes verdadeiras – as espermatófitas, que inicialmente eram gimnospérmicas, ou seja, plantas que não apresentam fruto a envolver a semente.
Este grupo de plantas inclui as coníferas (Ex. pinheiro-bravo (Pinus pinaster), pinheiro-manso (Pinus pinea), pinheiro-silvestre (Pinus sylvestris), abetos (Abies spp.), cedros (Cedrus spp.), araucárias (Araucaria spp.) sequoias (Sequoia spp.), etc.), as cicadófitas (Ex. Cica (Cycas revoluta) e a Cica azulada (Encephalartos horridus)), a ginkgo (Ginkgo biloba) e as gnetófitas (Ex. Welwitschia mirabilis, Gnetum gnemon e a gestrela (Ephedra fragilis)).
As espermatófitas evoluíram e formaram-se também as angispospérmicas – plantas com semente, protegida por uma estrutura, o fruto, – e que apresentam ainda uma característica mais marcante a presença de flores vistosas. Este é o maior e mais complexo grupo de plantas existente na Terra, representando cerca de 90% de todas as espécies de plantas.
O feto-real tem folhas peculiares e a forma como se propaga foi, durante muito tempo, responsável pelo misticismo que o envolve. Quando encontro na natureza extensas áreas de fetos, no subcoberto de árvores gigantes, dou por mim a imaginar-me um gigante naquela que poderá ser uma floresta, dentro de outra floresta, habitada por fadas e duendes. É uma planta que nos transporta para estados de espírito calmos e bucólicos, apelativos à inspiração, à fantasia e à magia.
Dicionário informal do mundo vegetal:
Perene – planta que tem um ciclo de vida longo e que viver três ou mais anos.
Herbácea – planta de consistência não lenhosa e verde.
Rizomatosa – planta cujo caule é subterrâneo – rizoma – que cresce geralmente na horizontal, com aspeto de raiz, composto de escamas e gemas, como se de um caule aéreo se tratasse.
Recomposta – folha composta cujo limbo (parte mais larga da folha) é dividido em vários eixos, podendo estes, por sua vez, dividirem-se em folíolos mais pequenos.
Limbo – parte larga de uma folha normal.
Folíolo – cada uma das partes em que o limbo, de uma folha composta ou recomposta, se divide.
Bipenatissecta – folha penatissecta com os segmentos divididos, por sua vez, até à nervura.
Penatissecta – folha peninérvea cujos recortes do limbo atingem a nervura principal.
Peninérvea – folha com uma só nervura dorsal principal, de onde partem nervuras secundárias até à margem e a igual distância, lembrando a disposição das “barbas” de uma pena.
Ovada-lanceolada – folha com base atenuada e à medida que chega ao ápice vai ficando com forma oval.
Pecíolo – “pé” da folha que liga o limbo ao caule.
Fronde – folha típica dos fetos e de outras plantas (ex. palmeiras).
Caduca – folha que cai espontaneamente na estação do ano mais desfavorável.
Dimorfismo foliar – as folhas possuem formas diferentes. O mesmo que biforme ou dimórfico.
Esporângio – estrutura membranosa ou cápsula em forma de saco, onde se formam e se armazenam os esporos.
Soro – agregados densos de esporângios.
Pedunculado – que tem pedúnculo, “Pé” que sustenta o esporângio.
Deiscente – esporângio que, quando maduro, se abre naturalmente para libertar os esporos.
Esporulação – processo de formação dos esporos.
Epífita – que cresce sobre o tronco ou ramos de árvores, de arbustos ou de outras plantas.
Todas as semanas, Carine Azevedo dá-lhe a conhecer uma nova planta para descobrir em Portugal. Encontre aqui os outros artigos desta autora.
Carine Azevedo é Mestre em Biodiversidade e Biotecnologia Vegetal, com Licenciatura em Engenharia dos Recursos Florestais. Faz consultoria na gestão de património vegetal ao nível da reabilitação, conservação e segurança de espécies vegetais e de avaliação fitossanitária e de risco. Dedica-se também à comunicação de ciência para partilhar os pormenores fantásticos da vida das plantas.
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