Carine Azevedo dá-nos a conhecer esta planta de flores vistosas, que recorre a uma curiosa estratégia no que respeita aos insectos polinizadores.
As plantas silvestres são muitas vezes consideradas como ervas daninhas ou infestantes. Aparecem um pouco por todo o lado e, apesar de não serem bem vindas pelos donos dos jardins nos seus canteiros, são fundamentais para o equilíbrio dos ecossistemas.
É na primavera que muitas destas plantas “irritantes” nos brindam com as mais belas flores, cada uma mais especial que a outra. Ainda que pareçam indiferentes aos olhos de quem passa por elas.
O jarro-dos-campos (Arum italicum subsp. italicum) é uma dessas plantas muito comuns, mas com flores que saltam à vista.
Araceae
O jarro-dos-campos é uma planta da família Araceae, que agrupa 140 géneros botânicos e mais de 4.000 espécies, popularmente usadas como ornamentais um pouco por todo o mundo.
As plantas desta família possuem uma inflorescência distinta, conhecida como espadice, geralmente protegida por uma única bráctea semelhante a uma folha – a espata.
As plantas mais populares e conhecidas desta família incluem o jarro-de-jardim (Zantedeschia aethiopica), a costela-de-adão (Monstera deliciosa), o inhame (Colocasia esculenta), os antúrios (Anthurium spp.) e os filodendros (Philodendron spp.).
Em Portugal, esta família está representada por sete géneros botânicos, com onze espécies nativas em Portugal Continental, três no Arquipélago dos Açores e cinco no Arquipélago da Madeira.
Das espécies nativas presentes em Portugal destacam-se:
- o capuz-de-frade (Arisarum Simorrhinum), que floresce profusamente no outono e no inverno;
- a lentilha-de-água (Wolffia arrhiza), a mais pequena planta vascular portuguesa;
- o Arum italicum subsp. canariense, subespécie nativa da região Macaronésia e que em Portugal só pode ser vista no Arquipélago da Madeira;
- e o Dracunculus canariensis, também endémico da região Macaronésia, cujos registos mais recentes apontam para a eventual extinção no Arquipélago da Madeira, estando apenas presente nas Ilhas Canárias.
O jarro-dos-campos
O jarro-dos-campos é também vulgarmente conhecido como jarro, jarro-bravo, jarro-comum, jarros-dos-campos, alho-dos-campos, arrebenta-boi, candeias, erva-da-novidade, serpentina, jarreiro, entre outros.
É uma planta perene, herbácea, rizomatosa e acaule, que passa uma parte do seu ciclo vegetativo abaixo da superfície do solo, mantendo-se ativa através do seu rizoma.
As primeiras folhas desenvolvem-se no outono ou no início do inverno, antes da floração. As folhas são basais, de cor verde-clara e lustrosas, por vezes irregularmente manchadas de branco ou negro. São inteiras, sagitadas – em forma de seta – e possuem um pecíolo comprido, também ele verde-claro. As folhas permanecem à superfície do solo durante todo o inverno e parte da primavera, morrendo, muitas vezes, ainda durante a floração.
O jarro-dos-campos é uma espécie monóica, cujas flores unissexuais – femininas e masculinas – coexistem no mesmo indivíduo.
As flores despontam na primavera, entre os meses de março e maio. São muito pequenas, amarelas e desprovidas de pétalas e sépalas. Surgem reunidas numa inflorescência, o espadice, protegido por uma bráctea grande, branco-esverdeada a verde-amarelada, e por vezes com manchas púrpuras – a espata.
O espadice é uma estrutura cilíndrica, espessa e carnuda, que mede cerca de um terço a metade da espata e é geralmente de cor amarelada.
As flores dispõem-se ao longo do espadice de forma muito complexa e organizada. As flores masculinas surgem no topo do espadice e as femininas ocorrem na parte inferior desta estrutura.
Além da disposição das flores por género, também é visível uma outra organização: as flores masculinas que se encontram no topo do espadice são estéreis e surgem separadas das flores masculinas férteis por uma parte nua do eixo, sem flores. Abaixo das flores masculinas férteis, surge novamente uma parte nua do eixo, abaixo da qual ocorrem as flores femininas estéreis, seguidas das flores femininas férteis, onde ocorrem os nectários.
Esta distribuição complexa das flores tem como principal função apoiar a polinização destas plantas.
Após a floração, a espata murcha e formam-se os frutos. Os frutos surgem numa infrutescência com quatro a nove centímetros de comprimento. A infrutescência é composta por várias bagas, verdes na fase inicial de formação, tornando-se vermelho-alaranjadas e brilhantes na maturação. Cada fruto contém entre uma a quatro sementes ovóides, cinzentas ou acastanhadas.
Habitat e ecologia
O jarro-dos-campos é uma espécie nativa da Europa Mediterrânica e Ocidental, Norte de África e Oeste da Ásia.
Em Portugal ocorre um pouco por todo o território continental, especialmente em bosques fechados, na orla de bosques ripícolas, em terrenos baldios e em campos agrícolas, embora também possa ocorrer em campos e jardins mais abertos.
Trata-se de uma planta pouco exigente. Cresce tanto em locais totalmente sombreados, com meia-sombra, ou em locais onde estão diretamente expostos ao sol; no entanto, prefere os ambientes de sombra, húmidos e frescos.
Do ponto de vista edáfico, os rizomas destas plantas podem crescer mais vigorosamente quando se encontram em solos de textura argilosa, tanto com pH neutro, como ácido ou alcalino, embora prefiram solos profundos e bem drenados, razoavelmente ricos em nutrientes e preferencialmente azotados.
Quanto à sua resistência a condições adversas, pode dizer-se que toleram temperaturas negativas acentuadas, até -10ºC, ainda que sejam sensíveis às geadas tardias, sendo aconselhável a sua proteção nestas situações.
Papas de serpentina
Em Portugal a sua utilização como planta ornamental não é muito comum, mas na verdade, a beleza rara desta planta, em diferentes momentos do seu ciclo vegetativo, tornam-na numa belíssima escolha para qualquer jardim ou espaço verde.
Do outono à primavera, brinda-nos com as suas folhas exuberantes que cobrem os terrenos. Mais tarde, é a vez das belíssimas e elaboradas inflorescências de cor creme e amarelas despontarem, antes de no final da primavera se transformarem em infrutescências radiantes, repletas de bagas vermelhas-alaranjadas. Apesar de muito vistosas, estas bagas não são comestíveis pela sua toxicidade.
O jarro-dos-campos é uma excelente planta de cobertura do solo, que facilmente ocupa o subcoberto das árvores, uma vez que cresce bem à sombra. Combina perfeitamente com fetos, hostas (Hosta spp.), lírios (Iris spp.) e outras plantas que complementarão o seu período de dormência, no verão. Também pode ser cultivado em vasos e criar paredes verdes que ofereçam alguma privacidade, em jardins verticais previamente instalados.
Infelizmente, esta planta não é adequada para um jardim para crianças ou animais domésticos, pois todas as suas partes contêm compostos químicos potencialmente tóxicos, nomeadamente oxalato de cálcio, saponinas e triglochinina.
O gado bovino, caprino e ovino também é susceptível ao consumo desta planta.
Estas substâncias quando ingeridas podem causar sensação de desconforto severo, irritação e queimadura nas mucosas da boca e na garganta, asfixia, vómitos, hemorragias, podendo até causar a morte.
A seiva também é irritante para a pele, podendo causar dermatites.
Pela elevada toxicidade que possui, a sua utilização como planta medicinal é pouco aconselhável, sobretudo ao nível interno. No entanto, ao nível externo, são-lhe atribuídas prodigiosas virtudes terapêuticas. As folhas frescas são usadas para o tratamento de queimaduras na pele e, quando trituradas num almofariz, pode obter-se uma pasta com poder cicatrizante para o tratamento de pústulas, de frieiras ou para ativar a cicatrização de úlceras persistentes.
Os rizomas do Arum italicum, previamente cozinhados para neutralizar os seus componentes tóxicos, também já foram transformados em “farinha” que era usada para fazer pão e as papas de serpentina, um doce típico da Ribeira Chã, na Ilha de São Miguel. Ainda hoje há quem as faça na Ilha de São Jorge, onde eram tidas como um bom remédio para o tratamento da diarreia.
Italian lords-and-ladies
A estrutura floral complexa e a existência de flores masculinas e femininas no mesmo indivíduo, vale a esta planta o nome vulgar inglês de Italian lords-and-ladies.
Curioso e complexo é, também, o processo de polinização desta planta, que poderá ser responsável pela designação científica da espécie Arum italicum.
O nome do género Arum deriva do grego Aron, que significa “calor”, referindo-se às características destas plantas para produzir e manter o calor na “câmara” formada pela base da espata durante o período de floração, que serve de apoio no processo de polinização.
O restritivo específico italicum foi citado pelo botânico inglês Philip Miller, e significa “italiano” ou “da Itália”, onde terá sido catalogada pela primeira vez.
A planta atrai os insectos polinizadores, potenciando deste modo a polinização entomófila, através do aroma fétido libertado pelas flores. Este aroma atrai insectos dípteros e saprófitas por ser muito semelhante a matéria orgânica decomposta – especialmente para as fêmeas, que gostam de depositar os seus ovos em locais onde a matéria orgânica se encontra em deterioração.
Os insectos, iludidos e sem qualquer recompensa, tentam pousar nas paredes da espata, mas acabam por cair no interior da câmara, onde se encontram as flores femininas. Depois de caírem, dificilmente conseguem sair, pois as flores estéreis funcionam como um sistema de “fecho” que permite que os insectos entrem, mas os impede de sair.
Os insectos alimentam-se do néctar e, ao debaterem-se para se libertarem, acabam por espalhar o pólen sobre as flores femininas férteis, obtido numa outra inflorescência, fecundando-as. Quando as flores estão fecundadas, as flores estéreis murcham e os insectos já podem sair. É nesta altura que as flores masculinas férteis ficam maduras e, uma vez mais, no caminho de saída, os insectos saem carregados de pólen que irão deixar noutra planta.
Este processo resulta num elevado gasto de energia para a planta que, como consequência, perde precocemente algumas das suas partes, nomeadamente as folhas, a espata e a parte superior do espadice. No entanto, é extremamente eficaz na promoção da polinização cruzada e consequentemente na reprodução de novos indivíduos. Segundo estudos recentes, é raro haver frutos viáveis resultantes da auto-polinização, já que habitualmente não se desenvolvem até ao final.
Por sua vez, os pássaros, ao alimentarem-se das bagas, são os principais responsáveis pela dispersão das sementes.
Uma Araceae muito especial
Uma das espécies menos conhecida da família Araceae, mas particularmente interessante, é a flor-cadáver (Amorphophallus titanum), também conhecida como jarro-titã.
Esta planta herbácea nativa de Sumatra produz a maior inflorescência do mundo, formada por uma grande espata com uma textura profundamente enrugada, de cor verde ou creme por fora, que envolve firmemente o espadice antes de abrir para revelar o seu interior de cor carmesim.
A metade superior visível do espadice é lisa e de cor amarelada acastanhada. Já a parte que no espadice fica mais abaixo encontra-se dentro de uma câmara protetora, onde se encontram centenas de flores masculinas de cor creme, localizadas acima das flores femininas rosa a laranja.
A inflorescência, quando totalmente formada, pode atingir três metros de altura e pesar cerca de 75 quilos.
Embora a inflorescência se desenvolva ao longo de vários meses, atingindo crescimentos diários de cerca de 15 centímetros, esta mantém-se aberta apenas por 24 a 48 horas e produz um odor característico a carne podre – daí o seu nome comum, flor-cadáver.
Esta planta pode viver cerca de 40 anos, levando 4 a 10 anos ou mais entre florações, florescendo apenas duas a três vezes ao longo da vida.
A flor-cadáver só pode ser vista no seu habitat natural ou em alguns jardins botânicos do mundo. Em Portugal não podemos encontrar esta magnífica espécie, mas podemos encontrar o jarro-dos-campos. Basta um olhar atento para encontrar as suas belíssimas inflorescências a contrastar com o verde das suas folhas. E garanto, não cheira tão mal como a flor-cadáver.
Dicionário informal do mundo vegetal:
Espadice – espiga de flores nuas, geralmente pouco vistosas e unissexuais, dispostas num eixo espesso e carnudo, envolvido e protegido por uma bráctea (espata).
Espata – bráctea ou par de brácteas que rodeia e protege certas inflorescências, geralmente vistosa para atrair os polinizadores (ex. parte branca das flores dos jarros-de-jardim).
Perene – planta que tem um ciclo de vida longo e que vive três ou mais anos.
Herbácea – planta de consistência não lenhosa e verde.
Rizomatosa – planta cujo caule é subterrâneo (rizoma).
Acaule – planta aparentemente sem caule, ou cujo caule, curto ou subterrâneo, não é visível.
Rizoma – caule subterrâneo, que cresce geralmente na horizontal, com aspeto de raiz, composto de escamas e gemas, como se de um caule aéreo se tratasse.
Sagitada – folha em forma de seta, isto é, em forma de triângulo agudo, prolongando-se na base em duas aurículas ou lóbulos agudos, dirigidos para baixo.
Pecíolo – pé da folha que liga o limbo ao caule.
Monóica – espécie que apresenta flores femininas e masculinas separadamente na mesma planta.
Inflorescência – forma com as flores estão agrupadas numa planta.
Bráctea – folha modificada, localizada na base da flor que a protege enquanto está fechada.
Nectário – estrutura que segrega o néctar, que é um exsudado açucarado que atrai os insetos, aves e outros animais.
Infrutescência – reunião de frutos provenientes de flores dispostas em inflorescências.
Polinização entomófila – realizada por insetos.
Insectos dípteros – moscas, mosquitos, varejeiras, entre outros.
Saprófita – organismo que se alimenta de matéria-orgânica em decomposição.
Polinização cruzada – fecundação de uma flor pelo pólen de outro indivíduo da mesma espécie ou de espécie diferente.
Autopolinização ou polinização direta – a transferência de pólen ocorrer dentro da mesma flor.
Todas as semanas, Carine Azevedo dá-lhe a conhecer uma nova planta para descobrir em Portugal. Encontre aqui os outros artigos desta autora.
Carine Azevedo é Mestre em Biodiversidade e Biotecnologia Vegetal, com Licenciatura em Engenharia dos Recursos Florestais. Faz consultoria na gestão de património vegetal ao nível da reabilitação, conservação e segurança de espécies vegetais e de avaliação fitossanitária e de risco. Dedica-se também à comunicação de ciência para partilhar os pormenores fantásticos da vida das plantas.
Para acções de consultoria, pode contactá-la no mail [email protected]. E pode segui-la também no Instagram.