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Em Somiedo na companhia dos ursos-pardos cantábricos

03.10.2017

Territórios pouco ou nada alterados pelo homem são a escolha preferencial nas saídas de campo em que essa opção ainda é possível.

 

Nunca colocaria uma paisagem humanizada acima de um qualquer espaço natural intocado, apesar de reconhecer muita beleza e equilíbrio em inúmeros meios campestres fortemente moldados pelo homem. Esta diferenciação de valores tem-se acentuado com o progressivo abandono do mundo rural e das práticas mais artesanais com que o homem, ainda num passado não muito longínquo, manipulava o meio. O abandono de terras fortemente transformadas pelo homem gera degradação, levando muito tempo a recomporem-se, apesar da natureza incansável da… Natureza.

Claro que o desfrute de cenários primitivos, num continente tão humanizado e fragmentado como é a Europa, tornou-se uma utopia. Só raramente sinto vislumbres do que terá sido o território com que mais convivo, antes de o homem o ter transformado profundamente.

Somiedo contraria este sentimento nostálgico. Vou tentar transmitir as razões porque assim é.

 

 

Num concelho situado no extremo sul do Principado das Astúrias, foi criado em 1988 um parque natural com o intuito de preservar um espaço muito representativo dos ecossistemas de montanha presentes na cordilheira cantábrica.

Dominado pelo El Cornón (2188 metros) o seu cume mais elevado, o parque é caracterizado por uma natureza harmoniosa e sedutora num relevo acidentado, por vezes agreste e por uma flora e uma fauna de grande interesse para a conservação com mais de mil plantas vasculares catalogadas e quase duzentas espécies de vertebrados.

Somiedo, juntamente com outros concelhos asturianos vizinhos, como Cangas del Narcea, Tineo, Belmonte de Miranda e Teverga, constitui o espaço vital para a sobrevivência do maior núcleo da muito restringida população de urso-pardo da Península Ibérica. Esta tem sido de uma forma crescente, a fortíssima motivação para preservar um espaço que também por isso atesta um interessante convívio homem-natureza gerador de paisagens de grande valor cénico.

Os ursos vagueiam em número crescente, em montes densamente cobertos por faiais a perder de vista, fragmentados por cristas rochosas, afloramentos de caliza sedimentária, onde veados e rebecos são mais fáceis de seguir. E por vales, muitos deles atestando glaciares antigos, com pastagens naturais formando grandes clareiras que a cotas menores são delimitadas por arvoredo denso de muitas espécies de folhosas.

 

 

No Outono, mantos extensos de uva-do-monte contribuem para o acumular das reservas calóricas com que os ursos sobrevivem no período de hibernação. No fundo das depressões mais cavadas, aveleiras, freixos, sorveiras, padreiros, azevinhos e teixos, entre muitas outras essências arbóreas marginam os cursos de água e engrandecem a beleza rude dos pequenos povoados onde ainda residem os que vivem essencialmente da exploração pecuária e do turismo proporcionado em especial pela presença dos ursos.

No início de cada Primavera o gado é levado para as brañas, pequenos aglomerados de abrigos primitivos de pedra e colmo onde outrora se vivia com a criação, nos meses mais quentes do ano.

As muitas incursões possíveis a quem demanda Somiedo têm início a partir dos vales principais. O rio Somiedo corre pela depressão central onde se situa Pola de Somiedo, a sede do concelho e um excelente local para assentar o acampamento-base. Ali encontram-se as sedes da área protegida e da Fundacion Oso Pardo, uma organização que, tal como o FAPAS – Fondo para la Protección de los Animales Salvajes, há muito trabalha com os ursos cantábricos.

El Putracón, Penouta, El Mocosu, Pena Mochada ou Gurugu são cumes que rapidamente entram no vocabulário de quem se embrenha por Somiedo no encalço não só dos ursos mas também das águias-reais e dos grifos. A probabilidade de avistar um exemplar de quebra-ossos é crescente já que o maior dos abutres beneficia de projectos de reintrodução em várias províncias espanholas. A breve prazo deverão voltar a estabelecer-se na cordilheira.

 

 

O vale de Pigueña é mágico. Entre Aguasmestras e a remota povoação de Villar de Vildas, uma estrada muito estreita e sinuosa liga as aldeias de Santullano, Robledo, Pigueces, Pigueña, La Rebollada e Corés. É a partir de todas elas que se descobre a essência do mundo sumedano. Boas pernas e um escrupuloso respeito pelo ordenamento do território, estabelecido para que não se invadam as Áreas de Uso Restringido onde o acesso é condicionado para defesa da vida selvagem, são os requisitos para aceder aos «collados», vencendo fortes pendentes, atravessando misteriosos «hayedos», frequentemente imersos numa densa neblina em que importa estar atento aos sons característicos dos raros pica-paus-pretos e dos pica-paus-medianos bem como às marcas que os ursos deixam em troços enlameados dos trilhos ou nas árvores em que se tentam desparasitar. Avistar um galo-montês é uma realidade cada vez mais difícil de se concretizar face à regressão acelerada da espécie, mesmo neste reduto onde mais ocorria.

Aguino é outra aldeia situada num vale muito mais curto. Mas dela partem alguns dos percursos preferidos nas minhas caminhadas asturianas. Do outro lado do Parque, Saliência remete-nos para um vale glaciar imenso em cuja cabeceira, junto ao Altu La Farrapona, se concentram vários lagos. É nestes territórios inóspitos e ventosos a maiores altitudes, cobertos de neve no Inverno, que ocorrem a perdiz-cinzenta e a lebre-do-piornal.

A razão porque Somiedo atrai muito também se deve precisamente ao facto da preservação da vida selvagem ser uma das razões principais que explicam o excelente estado de conservação do seu território humanizado.

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