Todos os meses, o projecto “Atlas das Paisagens Literárias de Portugal Continental”, ligado à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, dá-lhe a conhecer as paisagens e a biodiversidade que povoam as obras literárias de escritores portugueses.
“Ver uma encosta de Barca de Alva coberta de flores de amendoeira, ou o Solar de Mateus a emergir dum mar de corolas sortidas, é contemplar o inefável.”
Portugal, Miguel Torga
“Barca de Alva, 10 de Abril de 1947- Descida de burro de Freixo até aqui. Um Colorado nosso, com amendoeiras dependuradas sobre o abismo. Os sinclinais do xisto lembraram-me os estremecimentos inquisitoriais da nossa alma. E a espuma do rio, ao fundo, os êxtases do nosso corpo.”
Diário, vol. IV, Miguel Torga
O primeiro dos excertos em epígrafe alude ao espetáculo de apreciar o Solar de Mateus, em Vila Real, enquadrado por miríades de flores, que brotam das amendoeiras. Situação análoga sucede a quem desce da vila de Freixo de Espada à Cinta e contempla uma paisagem inefável, como o próprio Miguel Torga enuncia. De um lado, a imponência altiva e rochosa do Penedo Durão; do outro, a beleza delicada das árvores em flor, que se recortam num espaço agreste, colorindo-o.
A amendoeira é uma planta arbórea da família das rosáceas, género Prunus, que medra em zonas com verões quentes e secos e o seu cultivo remonta ao Crescente Fértil. Por ser muito ramificada, pode atingir os 8 metros de altura e a casca exibe uma tonalidade purpúrea. As folhas da amendoeira são verdes e glabras (sem pelos) e o fruto, ovoide, apresenta dimensões e variedades distintas: amêndoa redonda, cordiforme, elíptica, cordata e estreita.
Esta espécie desabrocha antes de todas as árvores de fruto existentes na bacia mediterrânica. Nos socalcos do território freixenista, outrora afagados pela escuridão e pela geada, brota a luz, que anuncia a primavera.
Como se de um quadro se tratasse, as flores brancas – ou róseas, no início da floração –, matizam o azul do céu, e delas emana um odor indescritível e uma visão encantatória. As amendoeiras em flor atapetam os declives do solo, correndo silenciosamente ao encontro do rio Douro, que lhes estende os braços, lá ao fundo, onde repousa: Barca D’Alva.
Antigamente, em Freixo de Espada à Cinta, as crianças corriam pelos campos, à caça dos amendrucos – amêndoas verdes destes Prunus dulcis –, que surripiavam das árvores, e com as quais se regalavam.
Na obra Vindima (Miguel Torga), Gustavo e Glória namoriscam à sombra de uma amendoeira; o romance Ernestina (Rentes de Carvalho) menciona a apanha da amêndoa, atividade que muito contribui para a economia transmontano-duriense. As amêndoas são utilizadas para confecionar bebidas, como o licor de amêndoa amarga, mas também para fins terapêuticos ou cosméticos, facto que surge plasmado em O Primo Basílio (Eça de Queiroz): Juliana tem o cabelo “lustroso do óleo de amêndoas doces”.
A doçaria nacional muito deve a este fruto, especialmente nas zonas onde se cultiva: o dom-rodrigo é originário do Algarve; o cds, o bolinho mais famoso de Freixo de Espada à Cinta; há amêndoas doces típicas de Torre de Moncorvo.
Mais uma vez, a literatura remete para o seu consumo: em A Tragédia da Rua das Flores (Eça de Queiroz), combina-se o vinho de Colares com a ingestão de amêndoa torrada e, em Os Maias, Afonso entrega a Vilaça amêndoas da Páscoa; Os Incuráveis (Agustina–Bessa-Luís) alude a tortas de amêndoa e Ternos Guerreiros a pão de amêndoa.
Uma tradição judaica ancestral refere que o ingresso na cidade de luz (imortalidade) se faz pela base de uma amendoeira. O esoterismo medieval associa a amêndoa a Cristo e à pureza virginal de Maria, que é, linguisticamente, designada a amêndoa mística. A chama da vela simboliza o fogo sagrado do amor divino e possui a configuração da amêndoa, tal como a auréola oblonga que envolve a cabeça dos santos. Curiosamente, a amendoeira chega a assumir um simbolismo fálico, muito embora a gestação ocorra sem a existência de cópula: nas mitologias frígia e grega, há versões em que o deus Átis foi concebido por uma virgem fecundada por uma amêndoa; uma antiga crença europeia refere que uma jovem adormecida sob esta árvore pode acordar grávida, se sonhar com o amado.
A referência à amendoeira ocorre em diversas conceções mitológicas e religiosas e em inúmeras lendas, como a de Chelb (Silves), que narra a história de Ibn-Almundim. Para subtrair a amada à melancolia em que tombara, pela saudade da brancura gélida que emoldurava o reino de seu pai, Ibn-Almundim mandou cobrir os campos de amendoeiras. Floriram na primavera, criando a ilusão de neve. E Gilda, a bela princesa nórdica, voltou a sorrir.
Escrita com Raízes
Natália Constâncio pertence ao grupo de investigadores ligados ao “Atlas das Paisagens Literárias de Portugal Continental”. Esta é a segunda crónica da série “Escrita com Raízes”.