O biólogo Paulo Catry leva-nos em viagem, confortavelmente sentados no dorso emplumado das aves migradoras.
Maio 2023
(Nota prévia: se a sua geografia estiver esquecida, por favor muna-se de um globo terrestre para ler esta crónica – ah, já agora, se quiser traga também um guia de aves.)
Ali pelo início do século XX, Selma Lagerlöf reduziu um menino ao tamanho de um duende e pô-lo às cavalitas de um ganso doméstico que se juntou a um bando de parentes selvagens. Nils Holgersson viajou assim de norte a sul da Suécia, numa viagem maravilhosa que deu a conhecer o país aos seus próprios habitantes e a tanta gente pelo mundo fora (a muita gente mesmo; a epopeia foi um sucesso tal que, volvidos uns 120 anos, quando escrevo num browser “a mara…”, cinco caracteres apenas, aparece-me logo a sugestão do título do livro de viagens).
Os gansos migradores foram uma escolha acertada para Nils, bem entendido, pois sabia-se já nesse tempo que, vindos do Sul, os gansos viajavam até à Lapónia para se reproduzirem e que voltavam no outono, desaparecendo outra vez além Báltico. Percorriam a Suécia de lés a lés.
Às vezes ponho-me a imaginar por onde Nils teria viajado se tivesse vivido no século XXI. A Suécia é um país grande… ou antes pequeno, se visto à escala do planeta; e nos tempos que correm, as mais das vezes, querem-se ambições verdadeiramente globais. E se quiséssemos visitar a Terra à boleia de uma ave?
O nosso viajante partiria então de um qualquer ponto que lhe aprouvesse, mas com a condição de ser daqui dos nossos lados. Desta feita não era o Nils, era o Jaime, ou a Marta.
Hoje sabemos que a gama de escolhas de destinos, em trajetos diretos desde Portugal (só com eventuais escalas para reabastecimento) é vastíssima. O Jaime queria ir à terra do Nils? Facílimo, com escolhas muito diversas para as boleias, desde pombos-torcazes a abibes, narcejas, garças-reais, tordos de várias espécies, aves e possibilidades demais para todas nomear.
A Marta preferia o litoral de países tropicais? E porque não? Talvez um rouxinol a levasse aos Bijagós ou, se o pilrito-das-praias fosse bem escolhido, quiçá a viagem se alongasse até Angola ou mesmo à Namíbia, onde há leões e avestruzes que se refrescam frente à rebentação fria da corrente de Benguela. Nas asas de uma cagarra, a Marta podia chegar mesmo ao largo do Brasil, mas para pôr um pé em terra seria necessário ainda um último esforço a nadar.
Por Portugal e pelo nosso mar passam regulamente e em grande número aves de sítios tão distantes como o Canadá (por exemplo certos alcatrazes, ou as gaivotas-de-sabine) ou a Sibéria (muitas aves limícolas). Há dezenas de espécies vindas de toda a Europa, excetuando alguns países mais a sudeste, e os inúmeros migradores transarianos (desde milhafres a andorinhas) ligam-nos diretamente a todos ou quase todos os países de África. Chegam-nos ainda pardelas de vários pontos do Atlântico Sul, e até painhos-casquilhos dos mares antárticos.
A verdade é que há aves que navegam o planeta Terra de uma ponta à outra, literalmente (certos garajaus-do-ártico). Outras que circum-navegam o globo através do Oceano Austral (alguns albatrozes e pardelões). Não faltam viajantes maravilhosos por aí. Mas por mais prodigiosas que sejam as aves, não há nenhuma que percorra todas as regiões do nosso berlinde azul.
Então e se a Maria João quisesse ir a Honolulu, ou a Nova Deli? Às vezes ponho-me mesmo a jogar este jogo: escolho um ponto aparentemente difícil e distante, e pergunto-me quantas boleias de aeronave emplumada seriam necessárias para lá chegar. A resposta é simples: quando não chega uma, bastam duas, se os indivíduos forem escolhidos a dedo. Vejamos: uma viagem ao Havaí? Bem, apanhamos um garajau-do-ártico holandês aqui de passagem e, quando chegarmos ali a sul da Tasmânia, saltamos para as costas de uma pardela-sombria neozelandesa que uns meses mais tarde nos depositará, quando visitar de passagem o nosso destino desejado. Uma visita à Índia? Bastam dois pequenos passarinhos; por exemplo, uma petinha-dos-prados (de 15 a 20 gramas apenas) conduzia-nos na primavera à Noruega e dali passávamos para um pisco-de-peito azul (com o mesmo peso), que no outono seguinte nos levaria a visitar o marajá da nossa escolha.
Talvez só por ignorância, ou por conhecimento ainda incompleto das migrações das aves, poderemos encontrar um destino que precise de três boleias.
Estes dias tenho sonhado persistentemente com um voo confortável em colchão de penas às costas de um picanço. Não é um picanço qualquer. Na verdade, é uma jóia de um picanço, um pássaro lindo de morrer. Quando esticadinho (e tem uma cauda comprida) nem 20 cm de comprimento mede, mas leva a cabo uma das viagens ornitológicas mais de pasmar.
O picanço-cascarrolho ou de-costas-vermelhas Lanius collurio é certamente o menos conhecido dos picanços nacionais. Chegou agora em maio, o mais tardio dos nossos pássaros primaveris. Encontra-se apenas no extremo norte do país, nas terras altas minhotas e transmontanas (um ou outro chega às Beiras, ali na serra de Montemuro), e depois da reprodução migra para África.
Mas se migra para África e vai para sul, afinal podemos encontrá-lo, nem que seja de passagem, por todo o território continental? Não. Para ir para África, os cascarrolhos ibéricos tomam um caminho que não lembraria ao mafarrico, nem lembrou a mais nenhuma ave de cá: voam diretamente para leste, até à Grécia ou à Macedónia!
Daqui, então sim, migram para sul sobrevoando o Mediterrâneo e o Sara. Depois de meses de viagem, e de peripécias que não podemos hoje aqui relatar, chegam ao seu destino final. Passam o inverno em Moçambique, no Malaui ou na Zâmbia. No regresso de Moçambique, um nosso cascarrolho faz um desvio ainda mais para leste e visita a Península Arábica antes de se vir instalar, por exemplo, nas serranias do Barroso. Que contorcionamento de rota de viagem! Será porventura espírito ecuménico. Ou, calhando, fizeram-lhe um bruxedo ao passar ali por Vilar de Perdizes…
Saiba mais.
Leia aqui outros textos já publicados por Paulo Catry, professor e investigador do Mare – Marine and Environmental Sciences Centre, Ispa – Instituto Universitário, na série Crónicas Naturais. E também os artigos publicados em 2017, quando esteve à procura de aves marinhas no meio do Oceano Atlântico.