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Crónicas naturais: peregrinos na cidade

14.04.2022
Falcão-peregrino. Foto: Carlos Delgado/WikiCommons

O biólogo Paulo Catry lembra-nos que, mesmo nas cidades, podemos viver quase paredes meias com espécies tão fantásticas como os falcões-peregrinos. Apesar de terem estado ameaçados, fizeram-se cidadãos de tantas metrópoles pelo mundo. Cosmopolitas.

Lisboa, 07 abril 2022

Quando estou em Lisboa demoro-me um pouco à janela. Tenho a sorte de ter uma vista ampla e de a casa não ter televisão. Entretenho-me com o rio lá em baixo e com as nuvens e o céu largo que se estende até à Arrábida no horizonte. Neste tempo ouvem-se os andorinhões. Muitas vezes vejo peneireiros por entre os prédios, peregrinos quase nunca.

O curioso é que, medido no Google Earth, que certamente pouco ou nada falha, a tão somente 600 metros desta janela está o ninho: o ninho dos falcões-peregrinos. 

Falcão-peregrino. Foto: Carlos Delgado/WikiCommons

Não se avista daqui. Mas basta um breve passeio até chegar-se a um bom ponto de observação. Num baldio pelo caminho há flores primaveris que fazem o trajeto parecer ainda mais curto: malvas, soagens, papoilas, pampilhos brancos e amarelos. Fui até lá hoje ao final da tarde, atrasado (não tenho tido ocasião), já há um bom bocado que deve ter sido a postura. Lá estava ela, a fêmea muito quieta ao vento frio, de capuz e “bigode” severo riscado na cara, deitada sobre as crias escondidas. O macho tinha saído. 

(Três dias depois voltei a espreitar, mesmo a tempo de ver o macho a chegar aos gritos com um pequeno pássaro, a fêmea a levantar-se e a dar-lhe lugar para ele ir alimentar a prole).

Não sei nada sobre os falcões-peregrinos da minha rua, exceto que poem em março e que geralmente os jovens voam em maio. No verão, no outono e no inverno é muito raro ver os adultos poisados na zona do ninho, embora ocasionalmente aconteça estar por lá um, às vezes dois com ar contente da companhia. Em geral aquilo está vazio, mas ainda assim sente-se uma presença que preenche o rio.

Falcão-peregrino. Foto: Imran Shah/WikiCommons 

Podia discorrer sobre a mais veloz de todas as aves, sobre os pombos e os pardais que os falcões-peregrinos certamente caçam em Lisboa, sobre como são cosmopolitas e se fizeram cidadãos de tantas metrópoles pelo mundo. Estiveram ameaçados por pesticidas e por caçadores e salteadores de ninhos. Recuperaram, continuam a expandir-se por aí, com os seus gritos roucos em tom de desafio. Alguns são migradores distantes, outros armas da secular caça de altanaria. Falcões quase omnipresentes, míticos mesmo assim.  

Falta-me autoridade para discorrer sobre os caçadores livres desta cidade, estes que vivem aqui na rua. São estranhos selvagens sobre os quais nada sei ainda. Nem sei sequer como não os vejo passar em frente à janela. É feitiço de peregrinos.


Saiba mais.

Leia aqui outros textos já publicados por Paulo Catry, professor e investigador do ISPA – Instituto Universitário, na série Crónicas Naturais e também publicados em 2017, quando esteve à procura de aves marinhas no meio do Oceano Atlântico.

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