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Crónicas naturais: inverno

09.02.2023
Foto: Paulo Catry

À medida que percorre a serra de Montesinho, pisando o solo gelado como se este este fosse de vidro mal moído, o biólogo Paulo Catry entranha-se na terra maravilhosa de águias, lobos e veados. Dias de inverno límpidos e selvagens.

Montesinho, janeiro 2023

Excetuando os rios, ao romper do dia está tudo gelado. Sítios houve onde o termómetro desceu aos 7 negativos. Uma alvéola patina sobre a superfície sólida e embaciada de uma charca. Erva e ramos geados como se estivessem nevados. E nas terras mais altas, do lado dos montes de Leão, a neve propriamente dita. Céu completamente limpo.

Poça gelada e erva geada. Foto: Paulo Catry

Nas veredas e aceiros, os cristais de gelo cresceram em pequenas colunas, gerados da humidade entranhada no solo, que ficam meio escondidos sob uma película superficial de terra. Quando se caminha, o chão cede e estala, como se pisássemos vidro mal moído. De resto, um silêncio de pasmar, madrugadas de ares especados e pássaros calados.

A águia é jovem de meses apenas, mas vigilante. Logo que parei para fotografar, a centenas de metros de distância, levantou voo e desapareceu do outro lado daquela crista. Continuei o meu caminho sem a procurar, mas voltei a encontrá-la mais adiante. Desta vez, mal apareci já a real se afastava, nem deu para uma muito distante fotografia. Não há em todo o mundo animal mais arredio. 

Não há ave mais distante e arisca do que a águia-real. Foto: Paulo Catry

(Devia haver uma certificação qualquer para os espaços ditos verdadeiramente selvagens, um rótulo de excelência para viajantes e visitantes – o ícone e o critério seriam esta águia. A região demarcada tem águia-real? Ok, está certificada. Não tem? Nem lobos ao menos? Lamentamos, é terra já muito de gentes, não é suficientemente bravia)

No dia seguinte, mais alto na serra, mais águias. Um casal em voos nupciais. Descida a pique, inversão súbita, subida aproveitando a velocidade ganha na queda livre. As asas não batem, fecham-se na rota descendente, abrem-se ligeiramente na curva cá em baixo e vão semiabertas para cima; antes do topo, fecham-se de novo, mas a águia vai lançada e sobe ainda… Só visto! 

Nymphalis polychloros. Foto: Paulo Catry

Hoje os corvos não largavam as águias, procurando debalde que dali se afastassem. Este território ficou livre há um par de anos, entretanto os corvos instalaram-se, mas agora regressaram as águias e, por mais espertos e legítimos ocupantes que sejam, os súbditos vão ter que dar espaço às novas monarcas. Contrariedades da vida. 

Foi mais uma visita aos lobos. Ao longo deste fim-de-semana grande percorri demoradamente o coração dos territórios de três alcateias distintas, incluindo um lameiro onde em setembro passado costumava ver as crias nas suas brincadeiras. Numerosas pegadas e dejetos cheios de pelo em todos estes sítios ermos. Presas em abundância, veados sobretudo, corços também. Ainda encontrei dois grandes cervos à luta por simples recreação; neste tempo já não são refregas sérias, mas são vigorosas, o embate das hastes ouvia-se na distância. 

Veado num lameiro. Foto: Paulo Catry

Um bando misto de chapins com a coleção completa: reais, azuis, carvoeiros, de poupa e rabilongos, acompanhados das inevitáveis estrelinhas. Estrelinhas-de-poupa também (raras, para o ornitólogo do sul); como é que um pássaro que chega a ter menos de 5 gramas pode pernoitar no monte, nestes janeiros de trevas intermináveis e de frio medonho?

Horas e horas de caminhada. Dores no corpo ao atravessar as ribeiras gélidas com água bem acima dos joelhos. Ninguém no campo. Nem uma só planta florida, nada. Inverno sólido. 

Veados na madrugada gelada. Foto: Paulo Catry

Grandes bandos de lugres nas matas de amieiros despidos. Três águias no total e uma única e surpreendente borboleta (Nymphalis polychlorus) de asas largas estendidas ao sol. Lobos? Certamente viram-me eles a mim. Dias de inverno maravilha.

Amieiros, choupos, freixos e vidoeiros despidos em pleno inverno. Foto: Paulo Catry

Saiba mais.

Leia aqui outros textos já publicados por Paulo Catry, professor e investigador do Mare – Marine and Environmental Sciences Centre, Ispa – Instituto Universitário, na série Crónicas Naturais. E também os artigos publicados em 2017, quando esteve à procura de aves marinhas no meio do Oceano Atlântico.

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