“Os andorinhões são o diabo para os aprendizes de ornitologia”, mas continuam a ser um enigma “mesmo depois de sabido o bê à bá”, confessa o biólogo Paulo Catry, que nos guia pelos mistérios destas aves fascinantes.
Lisboa, finais de Abril 2022
É tempo de manhãs radiantes de sol e de luz. À hora de acordar já tudo brilha, até as nuvens de branco sólido. Não tarda aparecem finais de tarde preguiçosos, céu laranja prolongado, aragem morna cheia de zilros. Tempo de andorinhões.
Os andorinhões são o diabo para os aprendizes de ornitologia. Em primeiro lugar, é preciso notar que não são andorinhas, de todo. Têm algumas semelhanças exteriores, mas dezenas de milhões de anos de evolução à parte. Mais aparentado com uma andorinha é um corvo, ou um canário, um andorinhão não tem nada a ver.
Os andorinhões são o diabo mesmo depois de sabido o bê à bá. Em Portugal há duas espécies comuns. As suas plumagens e até os pios são muito parecidos (ainda que distinguíveis) e custa mesmo a aprender como deslindar o andorinhão-preto Apus apus do andorinhão-pálido Apus pallidus.
Mas isto não é um curso de identificação e nesta crónica metem-se várias vezes os dois andorinhões no mesmo saco. De referir apenas que, ao contrário do que muitos pensam, o andorinhão-pálido não é escasso, antes pelo contrário; em Lisboa e em várias cidades do Litoral é mais abundante que o congénere mais farrusco.
Os andorinhões passam o inverno em África (os andorinhões-pretos ibéricos chegam a Moçambique onde, é engraçado notar, encontram andorinhões-pretos vindos da China!). Em terras africanas, ao longo de décadas e séculos, passearam-se e viveram inúmeros ornitólogos e naturalistas. E aquilo que todos disseram, foi que dormitórios de andorinhões dos nossos não viram. Criou-se assim a ideia estranha de que, enfim, parece mirabolante, mas dizia, a ideia de que os andorinhões talvez dormissem… no céu!
Estudos com radares meteorológicos na Europa confirmaram que mesmo por cá, na época de nidificação, para além dos reprodutores que dormem nos ninhos há muitos andorinhões imaturos que passam a noite no ar, voando sobretudo entre os 1000 e os 2500 metros de altitude. Em noites de ventania, orientam-se contra o vento, mas não aceleram e são arrastados – vão de marcha atrás! De manhã, regressam aos locais que lhes interessam*.
Nos últimos anos, conseguiu-se seguir a migração de andorinhões individuais com vários tipos de pequenos aparelhos (geolocalizadores de luz e acelerómetros) que indicam a posição geográfica aproximada e, muito importante, revelam se a ave está ativa em voo ou se está poisada a cada momento. E comprovou-se aquela ideia maluca de que os andorinhões, durante a sua estadia em África, poderiam não poisar! Na verdade, a maioria poisa, mas só muito ocasionalmente, não se sabe porquê (talvez durante tempestades?), por períodos curtos de uma, duas ou três horas, só em certas noites (representando <1% do tempo nas zonas de invernada). Mas todos eles passam muitas semanas em voo constante e alguns indivíduos chegam mesmo a não poisar durante os mais de 6 meses de permanência em terras do Sul **.
Mas então os andorinhões dormem mesmo a voar? Ou aguentam-se numa espertina danada durante meses a fio? Se dormir a voar é uma ideia de assombro, pensar que há aves que podem não dormir durante meses é, quiçá, uma ideia ainda mais estranha. Todos os animais relativamente complexos parecem precisar de dormir (também não se sabe verdadeiramente porquê – o sono é um dos grandes mistérios da biologia).
Os andorinhões não são as únicas aves que podem passar semanas ou meses sem poisar. Existem aves marinhas, como os garajaus-de-dorso-preto Onychoprion fuscata ou as fragatas Fregata spp. que também o fazem (e suspeita-se que também as andorinhas-dos-beirais Delichon urbicum – a confirmar). Como as fragatas são de grande porte, já foi possível colocar-lhes aparelhos que obtêm eletroencefalogramas enquanto elas se vão alimentar no mar por vários dias***.
E concluiu-se que dormem mesmo em voo! Podem dormir só com um dos hemisférios cerebrais “desligados”, mantendo assim um nível de consciência reduzido e um dos olhos abertos, ou podem por vezes “desligar” mesmo o sistema todo. Dormem muito pouco, uns poucos segundos de cada vez, às vezes um minuto, num total de pouco mais de meia-hora por noite. Dormem em momentos de voo planado, centenas de metros acima do nível do mar. Presume-se que o mesmo acontece com os andorinhões.
Os andorinhões dormem no céu. Às vezes anda-se nas nuvens só de olhar para eles.
* Bäckman J, Alerstam T 2001. Proc R Soc B
** Hedenström A et al. 2016 Curr Biol, Hedenström A et al. 2019 J Avian Biol
*** Rattenborg NC et al. 2016. Nat Commun
Saiba mais.
Leia aqui outros textos já publicados por Paulo Catry, professor e investigador do Mare – Marine and Environmental Sciences Centre, Ispa – Instituto Universitário, na série Crónicas Naturais. E também os artigos publicados em 2017, quando esteve à procura de aves marinhas no meio do Oceano Atlântico.