À boleia de Paulo Catry, em trabalho nas ilhas de Cabo Verde, ficamos a saber como a sociedade civil no arquipélago tem vindo a trabalhar para a recuperação da biodiversidade local. Com resultados positivos.
Agosto 2024
O regresso a Cabo Verde comove sempre, mas a emoção da familiaridade não resulta só de visitas anteriores, há algo mais. Os académicos discutem há décadas sobre a legitimidade de uma unidade biogeográfica chamada Macaronésia. Algo que une, supostamente, os arquipélagos dos Açores, da Madeira, das Canárias e de Cabo Verde. É fácil adivinhar a origem da ideia: existem bastantes famílias, géneros e espécies animais e vegetais comuns aos 4 arquipélagos. Mas para o viajante atlântico existem muitas outras reminiscências.
Em Cabo Verde, a paisagem, pintada a traços largos, faz logo de entrada lembrar os Açores ou as Canárias. A forma das ilhas, o seu tamanho e espaçamento, o seu número aproximado. É bem verdade que os climas nestes arquipélagos são diversos, mas são heterogéneos até em ilhas vizinhas ou dentro da mesma ilha: áridos nas terras baixas, húmidos nas encostas elevadas viradas aos alísios. Aqui em Cabo Verde estamos perto da costa africana e de outras ilhas, como por exemplo os Bijagós, mas com estas últimas não há praticamente semelhanças.
Para além dos grandes traços geomorfológicos e do omnipresente oceano do largo, há muitos outros pontos de encontro que quando estamos num dos arquipélagos macaronésios nos fazem pensar nos outros. A terra ocre, castanha, cinzenta de múltiplos tons. A rocha, ora cortante, ora abrasiva como lixa, ora pomes imponderável, ora polida, negra e densa como ferro. Os jorros de lava petrificada e os altíssimos cones vulcânicos: Pico, Teide, Fogo, primos direitos, quase irmãos.
Na vida terrestre, saltam aos olhos plantas como os dragoeiros Dracaena draco, os massarocos/línguas de vaca Echium, pássaros como as asas-curtas/mantas Buteo buteo ou as toutinegras Sylvia atricapilla, répteis como as osgas Tarentola. E no mar os sargos Diplodus sargus, os cornudos/peixes-verdes Thalassoma pavo, as almas-negras Bulweria bulwerii, os golfinhos-pintados Stenella frontalis ou os cachalotes Physeter macrocephalus.
E depois há os nomes partilhados das coisas da terra e do mar, as cagarras, os bidiões… Tudo são evocações. As casas de rocha vulcânica e os muros de pedra solta. As pequenas vilas enfeitadas de largos ajardinados, os coretos, as varandas, a madeira, as telhas. Ou ainda o milho, a batata-doce, o vinho nalguns recantos particulares, o atum-grelhado. A emigração dirigida aos EUA com origem nos intercâmbios com os baleeiros americanos. Para o viajante, as semelhanças são tantas que se houver dúvidas na biogeografia, há pelo menos uma certeza de unidade nos corações e até na sodadi.
No Ilhéu de Cima, à hora das refeições, procurando restos de qualquer sorte, juntam-se dezenas de pardais ruidosos e desavergonhados dentro da cozinha. Poisam no fogão, na banca, saltitam no chão. São pardais-de-cabo-verde Passer iagoensis que todo o dia vão explorando o espaço interior, mas que se organizam em hordas quando circula potencial alimento. A eles se junta algum grande (e endémico) lagarto-do-Fogo Chioninia vaillantii, que nos passa aos pés com o seu movimento lento e arrastado. Confiança animal típica de ambientes insulares, e aqui a insularidade é dupla, nem de uma ilha habitada se trata, estamos num dos 5 ilhéus do Rombo, uns salpicos de terra e rocha a norte da Brava.
A casa é de madeira, tosca e simples: uma grande cozinha e dois quartos. Foi montada e é gerida por uma ONG caboverdiana, a Associação Projecto Vitó. Belo nome para uma organização que vem de uma tartaruga marinha, assim batizada depois de salva por pescadores e recuperada por jovens entusiastas da ilha do Fogo.
Conheci o Herculano Dinis, um dos fundadores e atual Diretor Executivo do Projecto Vitó, em Luanda, em 2014. Eu era formador e ele formando, num curso sobre aves migradoras dirigido a participantes dos 5 PALOP. Um curso cheio de gente maravilhosa, perdi o contacto de alguns, larguei o de um ou outro, e agora aprendo com os restantes. Aprendo particularmente com o Herculano, que gere esta organização com mestria e tem intervenção em várias ilhas de Cabo Verde, mas com foco principal no Fogo, na Brava e nos ilhéus do Rombo. Conservação de aves, de tartarugas, de plantas endémicas, projetos de pesca responsável, educação e comunicação ambiental, a diversidade de iniciativas é notável.
Vim ao Ilhéu de Cima a pretexto da presença de tartarugas-comuns Caretta caretta que o Projecto Vitó procura proteger e monitorizar. Neste ilhéu de 2km de comprimento e com 22 muito pequenas praias, chegam a ter lugar alguns milhares de desovas nos anos melhores. Para além das tartarugas-comuns reprodutoras, observam-se também tartarugas-verdes Chelonia mydas juvenis nas águas agitadas em torno das rochas litorais – para estas, é uma zona de crescimento.
Permanecer neste ilhéu árido, ventoso e escaldante ao longo de semanas e meses exige um entusiasmo e uma abnegação fora do comum. Mas a equipa de cabo-verdianos que aqui encontro, Simone, Fábio, Yannick, Valdir, é fora de série. Sempre de boa disposição, apesar das condições logísticas rudimentares e das longas horas de trabalho noturno e madrugador. E a presença das equipas do Projecto Vitó tem mesmo vindo a dar frutos preciosos. A perseguição às aves e às tartarugas, outrora uma constante, é agora praticamente inexistente. O impacto positivo é por demais evidente, o número dos magníficos rabijuncos Phaethon aethereus, a maior ave marinha que ainda subsiste nos ilhéus, aumentou claramente na última década. Recentemente, surgiu até uma nova espécie que já nidificou com sucesso, o rabijunco-de-bico-amarelo Phaethon lepturus, praticamente desconhecido em Cabo Verde.
Mas há um longo caminho ainda a trilhar na recuperação da biodiversidade perdida (que, aliás, só é possível quando as espécies não estão globalmente extintas). Imagine-se que em tempos idos até guano se exportava destes ilhéus, o que indica a presença de populações colossais de aves como os alcatrazes Sula leucogaster (a toponímia também assinala cagarras Calonectris e fragatas Fregata – rabil, no nome tradicional), que atualmente estão confinados a sítios inacessíveis em grandes escarpas das maiores ilhas e a outros escassos ilhéus (as fragatas estão extintas em todo o arquipélago).
Os problemas são imensos. Os ilhéus do Rombo são uma reserva integral, que inclusivamente define uma área de não-pesca, mas o Estado cabo-verdiano ainda pouco faz para implementar de facto as Áreas Protegidas que decretou. São dificuldades de toda a sorte: pescadores que vêm instalar acampamentos (e que com eles trazem ratos – acidentalmente – e gatos – propositadamente), o pisoteio de áreas extremamente frágeis cheias de ninhos de pedreirinhos-azuis endémicos Pelagodroma marina eadesorum, o corte de vegetação sensível para alimentar gado na Brava, a poluição e a pesca excessiva. Os gatos, por exemplo, já levaram à extinção de uma gigantesca e excecional colónia de aves marinhas e de espetaculares répteis endémicos, no século XIX e no início do século XX, na ilha de Santa Luzia*. O risco de a história se repetir nos Ilhéus do Rombo é real.
Contudo, apesar das dificuldades, o Projecto Vitó e tantas outras ONG cabo-verdianas**, a vigorosa sociedade civil deste arquipélago, com o seu trabalho dedicado e rigoroso, vão fazendo mesmo a diferença. O exemplo mais eloquente prende-se, talvez, com o controle das capturas e o forte incremento das populações de tartarugas marinhas, bem como com uma sensibilização ambiental que já chega a uma grande parte da população nacional. Claramente, há esperança nesta imensa tarefa de recuperação do extraordinário património natural destas ilhas da Macaronésia.
* Alho et al 2022. Journal of Ornithology
** ONGA como sejam: Associação Projecto Biodiversidade – Sal; Associação Varandinha; Biosfera 1; BIOS.CV; Cabo Verde Natura 2000; Fundação Tartaruga; Fundação Maio Biodiversidade; Lantuna; Terrimar; entre outras.
Nota: a visita ao Fogo e aos ilhéus do Rombo de que resultou esta crónica teve lugar no quadro de um projeto sobre tartarugas marinhas financiado pelo PRCM (Partenariado Regional para a Conservação da zona costeira e Marinha) e pela fundação Hans Wilsdorf.
Saiba mais.
Leia aqui outros textos já publicados por Paulo Catry, professor e investigador do Mare – Marine and Environmental Sciences Centre, Ispa – Instituto Universitário, na série Crónicas Naturais. E também os artigos publicados em 2017, quando esteve à procura de aves marinhas no meio do Oceano Atlântico.