Paulo Catry, professor e investigador do ISPA – Instituto Universitário, oferece-nos vislumbres da natureza que reveste os seus dias. Nesta crónica conta-nos as histórias das aves que estão atarefadas nos ninhos em pleno Inverno.
Beira Baixa, 31 dezembro 2021
Trinta e um de dezembro, o calendário obstina-se na garantia de que o ano velho ainda não acabou de correr. Mas eu sonho com primaveras distantes e armado de binóculos e telescópio vou à procura de promessas de novo ciclo nas escarpas do Erges. Tarde soalheira, invulgarmente amena. Além das flores da época (ervas-vaqueiras, azedas, grisandras, bicos-de-cegonha, silenes), há algumas giestas-brancas precoces já floridas, e mesmo uma ou outra raríssima flor de rosmaninho algo extemporânea, mas decidida.
A maioria dos ninhos, nesta pequena colónia, mostra sinais de trabalho recente, estão volumosos e cheios de ramos novos. Vários têm um grifo sentado em cima ou, mais precisamente, semienterrado no meio de toda aquela lenha miúda. Muitas aves, de várias espécies, deitam-se como quem incuba logo uns dias antes de porem os primeiros ovos; será o caso aqui? Tenho de esperar com paciência a uma distância que não perturbe, telescópio aperrado, atento ao movimento.
Levanta-se um abutre comichoso, revelando um ninho que parece vazio, desilusão. Mais espera. Vão passando tordos e tentilhões.
Finalmente há um grifo que muda de posição no choco e consigo ver claramente que, antes de se voltar a deitar, ajeita com o bico um grande ovo branco. É um momento de mansa emoção para quem anseia já outras estações. Espero mais e confirmo que há pelo menos um segundo ninho com ovo, e outros dois ou três mais que também parecem ter. É final de dezembro, mas começou mesmo um novo ciclo!
Claro está que as nossas datas e linhas de corte são artificiais, como seria arbitrária a escolha desta ou daquela espécie para nos indicar meses ou estações. Nestas latitudes, já se sabe que a maior parte da passarada se reproduz quando os dias se alongam. Mas assim como há sempre plantas silvestres floridas, é possível encontrar aves em plena reprodução em qualquer momento do ciclo anual nalgum recanto do nosso país.
Os grifos não são únicos, outras aves fazem posturas já em dezembro, como sejam algumas corujas-do-mato mais invernais (tão difíceis de encontrar!), bem como os seus corpulentos primos, os bufos-reais. Em breve, várias outras espécies terão começado as suas atividades, e até os pequenos cartaxos se atrevem a incubar quando fevereiro ainda espalha geadas pelas lezírias.
Para uma ou outra das nossas aves, curiosamente, não estamos no início, mas sim em fim de ciclo. Em dezembro, nas ilhas Desertas (arquipélago da Madeira) completa-se a longa reprodução de muitas freiras-do-bugio, com o primeiro voo das crias rumo ao oceano aberto. E enquanto comíamos as rabanadas de natal ou abríamos o champanhe de ano novo, os pintos dos roquinhos esperavam nos seus ninhos escuros e húmidos (por exemplo nos Farilhões ou nas Selvagens) pela próxima refeição trazida pelos progenitores. Vários destes roquinhos só voarão em janeiro ou já mesmo em fevereiro.
Grifos que incubam nas gargantas gélidas de rios tumultuosos, corujas enfiadas nos troncos ocos de azinheiras cobertas de orvalho, crias de roquinhos em covis de pedra e rocha nas ventosas ilhas oceânicas… sabe bem lembrar, no conforto de uma manta e de um saco de água quente, que lá fora na noite de inverno a vida segue e renova-se, fleumática, surpreendente.
Saiba mais.
Leia aqui outros textos já publicados por Paulo Catry, na série Crónicas Naturais e também publicados em 2017, quando esteve à procura de aves marinhas no meio do Oceano Atlântico.