Faia. Foto: Hans Braxmeier

Conservatório das aves

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Todos os meses, o projecto “Atlas das Paisagens Literárias de Portugal Continental”, ligado à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, dá-lhe a conhecer as paisagens e a biodiversidade que povoam as obras literárias de escritores portugueses.

“Rompia da balsa uma faia enormíssima, corpulenta e altiva entre as demais, em volta de cujos ramos mil folhitas de ouro-verde esvoaçavam às transparências do sol. Tenho olhos de lince, olhos de caçador que se preza: de maneira que não foi preciso olhar muito para distinguir sobre a faia, a meia altura, num garfo de ramitos balouçados ao vento, o mais ligeiro ninho de pintassilgo, todo em musgos, lianas de fibra imponderável, penugens arrancadas pela mãe ao próprio ventre, nas fúrias dum louco amor instintivo. No cimo da faia, no cimo, como quem dissesse lá riba, nas águas-furtadas do prédio, morava um rouxinol. 

Como poetas de génio, os rouxinóis não podiam morar senão nas águas-furtadas.

E toda a noite ele cantava nos píncaros da árvore gigantesca! (…) Sob a Lua clara de Abril, ao pestanejar das estrelas, a sua voz corria escalas, tomava alturas extraordinárias, brios, inéditas riquezas, ressonâncias inauditas a esse largo estilo de canto, já hoje raro até nos tenores célebres. A faia tornara-se, pois, conservatório: melros ao rés-do-chão; no andar nobre, pintassilgos, o rouxinol boémio nas águas-furtadas.”

Fialho de Almeida, O País das Uvas (Tragédia na árvore)

Fagus sylvatica, a espécie europeia e mais comum. Seria desse tipo a faia que crescia no pego da horta de Fialho de Almeida. Enorme, enormíssima seria, ultrapassando, em anos, os trezentos e em metros de altura os cinquenta, que são esses os limites indicados nos manuais de botânica para os exemplares merecedores do adjetivo. 

Faia. Foto: Hans Braxmeier

De tronco em fuso, alto e reto como o de poucas árvores nativas da Europa, a faia apresenta uma casca lisa e acinzentada, tão característica que por ela facilmente se reconhece, devido à maciez e ao brilho que saltam ao toque e aos olhos. Depois de cortada, a madeira, que apresenta tons que vão do amarelado fulvo ao rubro, é simultaneamente resistente e flexível, o que a torna apropriada para o fabrico de móveis duradouros e objetos de grande beleza.

Região portuguesa na qual se enquadra este excerto literário. Autoria: Daniel Alves

Sagrada para muitos povos antigos, o poeta romano Virgílio eternizou-a no início da Primeira Écloga das Bucólicas, com o verso “Sub tegmine fagi”, que pode traduzir-se como à sombra das faias frondosas, expressão representativa da suave e descuidada vida no campo e que, ao longo dos séculos, tem sido glosada na poesia universal. Num registo mais vulgar, em Lisboa, a silhueta direita e delgada da árvore terá inspirado, por antonomásia, os epítetos faia e faiante, aplicados aos primeiros fadistas ajanotados.

Da faia, segundo os entendidos, tudo se aproveita: sementes e folhas podem alimentar homens e gados, embora por pouco tempo, e dos seus extratos saem componentes úteis em farmácia. Os mesmos dizem ser a faia cultivada sobretudo no Centro e Norte de Portugal (porque resiste aos ventos e ao frio), mas esquecem o hortejo alentejano – em Vila de Frades ou em Cuba, ambas povoações vividas pelo autor de O país das uvas – onde se dá a tragédia na árvore. 

Reza a lenda que o rouxinol, dormindo uma noite de primavera no ramo de uma videira em crescimento, terá ficado com as patas presas nas gavinhas. Sentindo-se perdido, pediu na aflição auxílio a Nossa Senhora, que o libertou, recomendando mil cuidados durante a noite. É esta a razão por que, entre os dois crepúsculos, o rouxinol não para de cantar: “Nossa Senhora disse, disse / que enquanto a rama da videira subisse / que não dormisse, que não dormisse”. Mas esta história pertence a outra planta…

No conto alentejano, a faia é o local onde se reúnem aves melodiosas, distribuídas pelas ramagens segundo as suas qualidades canoras. No topo, nas águas-furtadas vegetais, o poeta rouxinol, calado de dia, trinando à noite, desperta do sono os melros e pintassilgos, vizinhos dos andares mais baixos do “conservatório” vegetal, cansados das labutas do dia. Estranhos hábitos, os do rouxinol…

Para Fialho de Almeida, se no “conservatório” musical e vegetal que é a faia, o rouxinol leva a palma lá no alto, é ele também quem sofre a vingança assassina dos outros pássaros, pagando com a vida dos filhos o seu privilégio de noctívago e condenando-se a uma vida errante e magoada, sem poder voltar a abrigar-se sob a faia frondosa, cantando livremente noite fora.


Escrita com Raízes

Irene Fialho pertence ao grupo de investigadores ligados ao  “Atlas das Paisagens Literárias de Portugal Continental”. Esta é a quarta crónica da série “Escrita com Raízes”.

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