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Foto: Robert Cameron

As voltas de um caracol português

26.04.2017

As crónicas “Extintas por engano” chegam ao fim. Não se extinguem. Vão simplesmente ficar desaparecidas até que o próximo as reencontre e conte novas histórias.

 

Por aqui falámos de várias espécies Lázaro. Várias, mas não todas. Nem perto disso. Algumas histórias para aguçar a curiosidade de quem quer descobrir mais. Seja descobrir mais histórias ou novos renascimentos. Afinal são estas espécies que alimentam a imaginação de quem ainda hoje acredita ser possível redescobrir o Tigre da Tasmânia, o Sirénio de Steller ou mesmo o Megalodonte.

Geoffrey Orbell ensinou-nos isso mesmo, numa história que já contámos na crónica anterior. Crença e perseverança podem trazer muitas surpresas. E como pudemos compreender ao longo destas crónicas, não importa o tamanho ou há quanto tempo se pensa estar extinto. Reencontrámos espécies perdidas há milhões de anos. Ressuscitámos espécies de apenas alguns centímetros até outras com alguns metros.

Nesta última crónica vamos conhecer a história da, até hoje, única espécie Lázaro de Portugal, um caracol terrestre da ilha da Madeira.

A primeira viagem de Richard Thomas Lowe à Madeira foi em 1826, após ser ordenado como diácono pelo Christ College Cambridge. Chegou acompanhado pela mãe que procurava, como muitos naquele tempo, um clima que lhe aliviasse o sofrimento causado pela tuberculose. De facto a ilha da Madeira era uma espécie de ilha santuário no século XIX.

Lowe era um clérigo com uma enorme paixão pelo mundo que o envolvia. Os seus estudos de flora e fauna são famosos e foi responsável pela descrição de várias espécies novas para a ciência.

Nesta primeira viagem explorou a ilha durante alguns meses e ficou convencido de que o trabalho de Sir Joseph Banks, que havia colectado inúmeras espécies na Madeira aquando da paragem na ilha durante a viagem de James Cook à volta do mundo, tinha deixado ainda muito por revelar. O ímpeto naturalista fê-lo decidir-se a ficar na ilha.

Após um curto regresso a Inglaterra, para ser ordenado como padre, regressou à Madeira e em 1831 foi convidado pelo Reverendo William Deacon, capelão na ilha, para assumir a posição de capelão na pequena Igreja Inglesa (hoje conhecida como Igreja Inglesa da Santíssima Trindade). Esta oportunidade permitiu-lhe realizar os seus desejos profissionais e de naturalista.

Os resultados do seu trabalho como naturalista foram sendo publicados em vários volumes, tanto sobre a fauna como sobre a flora da Madeira. Descreveu várias espécies de caracóis, incluindo dois novos géneros contendo quase uma dezena de espécies novas. Em 1852, Lowe descrevia então o pequeno caracol terrestre da Madeira baptizando-o de Discus guerinianus, hoje Atlantica guerinianus.

 

 

Em 1978, Thomas Wollaston, um malacologista e entomologista inglês que dedicou a sua carreira às espécies da Macaronésia (embora nunca tenha colectado nos Açores), descreveu o habitat deste caracol terrestre como confinado a profundas ravinas arbóreas, sob rochas e folhas caídas, em zonas de elevação média a alta, após registá-lo na Ribeira de Santa Luzia.

Desde as descrições de Lowe e de Wollaston, o caracol endémico da ilha da Madeira não mais foi visto. Por várias vezes foram efectuadas expedições para encontrar este pequeno gastrópode, particularmente nas décadas de 70 e 80 do século passado, até que em 1996 foi oficialmente declarado como extinto, após cerca de 100 anos desaparecido.

Mas como que se tivesse preparado tudo em jeito de brincadeira, eis que em 1999, apenas 3 anos após a declaração oficial de extinção, Atlantica guerinianus renasce do mundo dos mortos numa expedição feita por Robert Cameron da Universidade de Sheffield e Laurence Cook da Universidade de Manchester.

Os dois investigadores britânicos reencontraram a espécie na região Oeste da ilha em dois locais próximos mas separados, locais que se encontravam relativamente não perturbados.

Em 2010, Robert Cameron revisitou os lugares verificando que a realidade era agora bem diferente. Na Ponta do Pargo fogos recentes tinham causado impacto no habitat do caracol, enquanto no Paul do Mar um desenvolvimento turístico levantava a possibilidade de total perda do habitat.

De facto, a espécie não tem qualquer uso comercial e a única ameaça à sua sobrevivência são os fogos e os empreendimentos turísticos, ou seja, qualquer ocorrência que promova a destruição do seu habitat. Encontra-se actualmente classificada como Criticamente em Perigo pela União Internacional para a Conservação da Natureza e está contemplada no anexo II da Directiva Espécies e Habitats da União Europeia, sendo a sua população desconhecida e, provavelmente, em estado de declínio.

Uma última nota: em todas estas crónicas utilizei sempre o termo espécie Lázaro. Em momento algum me referi a alguma destas espécies com a referência mais comum, de fóssil vivo.

E a razão para tal é simples. Embora o termo tenha sido cunhado e apadrinhado pela classe científica, está incorrecto. Um fóssil é um resto ou vestígio de um ser vivo que surge conservado num contexto geológico. Ou seja, um fóssil é uma entidade não viva. Tal torna a expressão fóssil vivo num paradoxo.

Como investigador na área da paleontologia cabe-me procurar mudar o termo, alertando para este facto e disseminando o termo comum mais correcto, espécie Lázaro.

 

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Sobre o autor:

Gonçalo Prista é doutorando da Universidade de Lisboa, em Ciências do Mar, e membro da Sociedade de História Natural de Torres Vedras. Trabalha nas áreas de paleoceanografia e paleontologia.

Desde Fevereiro este investigador escreve para a Wilder sobre as Espécies Lázaro. Pode ler e reler aqui a sua série de crónicas “Extintas por engano”.

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