O cavalo-marinho-de-focinho-curto (Hippocampus hippocampus) é uma das espécies que hoje podem ser encontradas no Mediterrâneo. Foto: Hans Hillewaert/WikiCommons

Como exterminar 89% das espécies marinhas do Mediterrâneo. Uma lição do passado

Quando o Estreito de Gibraltar deixou de existir, há muitos milhões de anos, a maior parte da água do Mediterrâneo desapareceu. Um estudo agora publicado explica o que aconteceu à biodiversidade local e como a vida conseguiu (ou não) recuperar.

The Conversation

O que aconteceria se transformássemos todo o Mar Mediterrâneo num gigantesco pântano salgado? A fauna sobreviveria? E quanto tempo levaria para recuperar?

Mapa do projeto Atlantropa de Herman Sörgel, que pretendia esvaziar parcialmente o Mediterrâneo para se ganhar mais terra para a Europa, uma extensão da ideia da Alemanha Nazi do Lebensraum. Fonte: Wiki Commons, Devil25 (mapa), VulcanTrekkie45 (tradução para espanhol), CC BY

Essas perguntas pareceriam inconsequentes não fosse o facto de um arquiteto alemão da Bavária ter dedicado boa parte da sua vida a esse mesmo projeto: construir uma grande represa no Estreito de Gibraltar e deixar o Mediterrâneo secar, para colonizar a terra recuperada do mar.

Herman Sörgel organizou palestras e documentários e arrecadou fundos até à década de 1950 para um projeto que, segundo ele, promoveria a cooperação entre a África e a Europa e eletrificaria os dois continentes com projetos hidrelétricos gigantescos. O que Sörgel não sabia era que esse sonho já tinha sido realizado há 5,5 milhões de anos atrás, no final da era do Mioceno, sem nenhum outro projeto por trás – apenas as leis da natureza.

Quando o Mediterrâneo secou

Desde a década de 1970 que várias gerações de geólogos e geofísicos confirmaram a existência de uma camada de sal com um a três quilómetros de espessura, enterrada na maior parte da zona mais profunda do Mediterrâneo.

Em causa estão quase um milhão de quilómetros cúbicos de sal, que atestam a ocorrência de um breve período de isolamento do Mediterrâneo em relação ao resto do oceano. Breve no sentido geológico, uma vez que este episódio durou cerca de 190 mil anos. E não é só isso: o clima seco desta região fez com que as águas se evaporassem e expôs uma grande parte do fundo do mar aos elementos, após a precipitação de todo esse sal.

Visualização da crise de salinidade messiana

O culpado deste episódio não foi um arquiteto alemão excêntrico, mas sim a tectónica de placas. A bacia do Mediterrâneo, presa entre dois continentes que hoje continuam a aproximar-se em até dois centímetros por ano, foi nessa altura isolada do Atlântico e as suas águas evaporaram-se rapidamente, devido ao clima árido que domina nessas latitudes.

Esse cenário, conhecido como a crise de salinidade messiniana (o último período do Mioceno), é o maior cataclismo sofrido pela Terra desde a queda do meteorito que exterminou os dinossauros não voadores e a era mesozóica, há 65 milhões de anos.

Fecho do último canal que ligava o Mediterrâneo e o Atlântico, que levou à crise de salinidade messiana há 5,96 milhões de anos. (B) e (C): os rios que antes escoavam para o Mediterrâneo escavaram canais profundos nas margens do continente; (D) a evaporação causou uma saturação de sal nas águas e a precipitação de sal deu origem a camadas de sal com mais de um quilómetro de profundidade; (E) lagos permeneceram nas partes mais profundas do mar. Esta ilustração mostra como alguns mamíferos, como camelídeos e gerbos, conseguiram mover-se através do Estreito de Gibraltar.  Pau Bahí y Daniel García Castellanos/Wikimedia Commons, CC BY-SA

Como resultado, não é necessária qualquer experiência de geoengenharia para responder à pergunta inicial: quão resistente é a vida marinha a uma crise ambiental dessa escala?

A resposta acaba de ser publicada na revista Science, num estudo liderado por Konstantina Agiadi, da Universidade de Viena, em colaboração com o Conselho Superior de Investigação Científica (CSIC), de Espanha, e 25 paleontólogos de 25 institutos europeus. Após reunir todos os dados fósseis do Mediterrâneo de entre 11 milhões e 2 milhões de anos atrás, os resultados sugerem que a vida marinha nativa foi praticamente extinta durante o isolamento do Mediterrâneo, e que a recolonização subsequente por espécies do Atlântico deu origem à fauna mediterrânea como a conhecemos hoje.

Espécies nativas, extintas e migrantes

Ao analisar estatisticamente as informações de mais de 750 artigos científicos, foi possível identificar 22.932 amostras fósseis de vida marinha, documentando 4897 espécies mediterrâneas antes da salinização do Mediterrâneo. Das 779 espécies possivelmente endémicas (encontradas apenas no Mediterrâneo), apenas 86 ainda estavam presentes após o fenómeno da salinização.

Por exemplo, todos os corais tropicais que eram abundantes no Mediterrâneo antes desta gigantesca mudança ambiental desapareceram. Por outro lado, algumas espécies de sardinhas aparentemente endémicas conseguiram sobreviver. Um exemplo de um mamífero sobrevivente é o sirénio, parente dos atuais peixes-boi e dugongos (também conhecidos como vacas marinhas).

Reconstrução de uma paisagem marinha do início do Plioceno (5,1-4,5 milhões de anos atrás) na costa da Toscana (Itália), mostrando o monodontídeo Casatia thermophila e o sirénio Metaxytherium subapenninum, duas das muitas espécies que só foram encontradas no Mar Mediterrâneo após a reabertura do estreito para o Atlântico. Alberto Gennari, CC BY

Devido ao registo fóssil limitado e fragmentado, não podemos ter certeza de que essas espécies eram todas endémicas ou de que não teriam sobrevivido fora do Mediterrâneo, daí o valor de realizar este estudo estatisticamente com um grande número de espécies. Mas entre aquelas que eram endémicas, onde terão conseguido sobreviver e que refúgios encontraram para evitar o aumento radical da salinidade e da temperatura?

Essas perguntas continuam sem resposta, mas para já conseguimos estabelecer que as mudanças nas populações se deveram à substituição por espécies do Atlântico após a reinundação, e não a uma rápida adaptação ao novo ambiente hipersalino. Em outras palavras, a vida não teve tempo de se adaptar e as espécies extintas foram substituídas por espécies exóticas do Atlântico.

Espécies icónicas, como o grande tubarão branco e o golfinho, apareceram pela primeira vez no Mediterrâneo apenas depois da crise. E ainda mais interessante: a atual maior riqueza da fauna do Mediterrâneo ocidental foi estabelecida após a reinundação, enquanto anteriormente o número de espécies era maior no Mediterrâneo oriental (mares Jónico e Levantino).

O golfinho-riscado (Stenella coeruleoalba) é um dos golfinhos mais comuns no Mediterrâneo. Foto: Francesca Grossi/Wiki Commons, CC BY

Lições sobre extinções em massa

O impacto do isolamento do Mediterrâneo na fauna e na flora foi enorme, destruindo a maioria dos ecossistemas e a conectividade entre os mesmos. Outro resultado importante que foi obtido, com o estudo desta gigantesca experiência natural, é que a recuperação em termos de números de espécies levou mais de 1,7 milhão de anos. Essa lenta recuperação da riqueza dos ecossistemas mediterrâneos fornece a primeira quantificação detalhada da resposta biológica estatística a um evento de extinção desta magnitude.

Atualmente, a biodiversidade do Mediterrâneo é muito alta graças à presença de inúmeras espécies endémicas. Os resultados do estudo sugerem que esse também era o caso há seis milhões de anos, mas que a grande maioria dessas espécies endémicas desapareceu durante o isolamento e a salinização do Mediterrâneo.

E talvez outra lição aprendida com este estudo seja que, por mais tentador que seja sonhar em manter a atual taxa de emissões de gases estufa e a destruição de ecossistemas, vale a pena aproveitar as experiências do passado geológico da Terra em vez de fazer experiências. O Mediterrâneo, apesar de se manter como um reservatório de espécies, levou milhões de anos para se recuperar. Ninguém sabe ainda quanto tempo levará para a vida marinha recuperar do tipo de mudanças à escala global que estão hoje em andamento.


Daniel García-Castellanos trabalha como cientista da Terra no Instituto de Geociências de Barcelona (Geo3Bcn – SCIC). Este artigo foi originalmente publicado em espanhol na The Conversation.

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