Todos os meses, o projecto “Atlas das Paisagens Literárias de Portugal Continental”, ligado à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, dá-lhe a conhecer as paisagens e a biodiversidade que povoam as obras literárias de escritores portugueses.
“As gralhas, entretanto, soam alto; desferindo aquela cascalhada prazenteira, que tão bem se ajusta ao tempo luminoso e quente. Que lindos dias Agosto nos vem oferecendo! […] O dia – Agosto já estava a findar – foi passando. Até o vento veio, sem que o esperassem. Aquele a que aqui chamam travessio, e que dá mais penas às mulheres a acender o lume que todo o outro, que remoinha e suja o pão quando o estão a erguer, que chamusca os feijões, uns em flor, outros em tenra vagem, que parte os milhos pela cana… e que soa na rama dos pinheiros e das giestas sem descanso. E tornam-se a ouvir as gralhas, um pássaro esquivo mas agradável.”
Irene Lisboa, Crónicas da Serra
A gralha, ave passeriforme da família dos corvídeos, é uma espécie residente; para além da mais comum – a gralha-preta –, no território nacional podemos lobrigar outras, em diversos tipos de habitat.
Estas aves mantêm uma relação próxima entre si. Sentindo-se acuada, a gralha avisa as companheiras da iminência do perigo, numa modulação análoga a um chamamento coletivo, e logo o bando reage. Pela intensidade e a estridência dessas vocalizações, desse crocitar, comummente se recorre ao verbo “gralhar”, à comparação “parecer uma gralha”, ou à metáfora “ser uma gralha”, associando-os às mulheres, ou aplicando-os a quem fale incessantemente. Inúmeros exemplos literários espelham esta visão: Shakespeare considera-as “palradoras”; do rumor de 50 árabes aglomerados, em A Casa do Pó (Fernando Campos), se diz “uma grande gralha e palratório”; em Os Maias (Eça de Queirós), emoldura-se a paisagem com um bando de pardais barulhentos, que “veio gralhar” nos ramos de uma árvore.
As gralhas possuem uma memória fabulosa e revelam uma inteligência ardilosa, oportunista: embora omnívoras, são afamadas por provocarem danos nos campos de cereais e nas árvores de fruto. Pilham ovos e crias de outras aves e são frequentemente as primeiras a cercar os cadáveres, pelo que, desde tempos imemoriais, emergem como um símbolo nictomorfo, de conotação funesta. Porque as suas penas refletem a luz solar, avistá-las indicia às outras aves necrófagas a existência de corpos em putrefação.
Em várias culturas, associam-nas à prática de bruxaria, pela valorização negativa da negrura que a sua plumagem ostenta. Teófilo Braga relembra que, na antiguidade romana, eram tidas como aves de mau agouro – avis spicium, particularidade sancionada pela literatura: num episódio de Dom Quixote, destaca-se “o grasno austero/ da gralha, ave de agouro” e o poeta latino Horácio associa-as à chuva. Para vaticinar o futuro, os arúspices observavam-lhes o voo, escutavam o seu canto, ou analisavam-lhes as entranhas.
Nos livros medievais de aves e nos fabulários, metaforizam comportamentos humanos. Em Esopo, são desprezíveis; Garrett apelida-as de “invejosas”; Bocage denomina-as “torpes” e, em Otelo (Shakespeare), personificam os homens néscios.
Todavia, não obstante a imagem negativa que espelham, também irrompem da tradição como seres ponderados: n’As Metamorfoses (Ovídio), a gralha procura dissuadir o corvo de desvendar a traição de Corónis a Apolo; algumas versões mitológicas apontam-nas como guardiãs da caixa de Pandora; na mitologia celta (Irlanda), o nome Badb, deusa da guerra – Corvo de Batalha ou Gralha Escaldada –, simboliza a iluminação e a sabedoria.
O excerto em epígrafe pertence a Crónicas da Serra, de Irene Lisboa – professora, escritora, poeta presencista (com o pseudónimo João Falco). Como notam vários críticos literários, a autora detém o olhar sobre pormenores (aparentemente) insignificantes do dia-a-dia, na esteira de Cesário Verde. No trecho apresentado, retrata-se a vida penosa na Serra da Estrela, particularmente a das mulheres: tratam da família, amassam o pão (muito “suado”), fazem o caldo, executam as tarefas domésticas e labutam no campo.
A dureza do quotidiano rural evidencia-se, subtilmente, pela alusão ao vento “travessio”, que sibila por entre os pinheiros e as giestas e destrói as colheitas.
Cirandando pelos ares, enchendo o espaço mudo e abrasador com uma toada vigorosa – aquela sonoridade indiscreta que as caracteriza –, as gralhas associam-se à época das malhas e fazem companhia às mulheres.
A referência ao final de agosto expressa, simultaneamente, a passagem do tempo natural, iterativo, das estações do ano, e o chamado tempo psicológico que, no enunciado transcrito, traduz a apreensão intuitiva e subjetiva do tempo pelas mulheres. Neste contexto veranil, as gralhas iluminam-lhes a existência, subtraindo-as à solidão – silêncio árido de uma voz relegada e flébil.
O canto destas aves, metálico e estridente, substitui a voz feminina e exorta ao grito. Ainda que (por ora) embargado. Não sendo maviosa como a do rouxinol, essa melodia fende os céus, libertando o coração feminino da angústia, numa “cascalhada prazenteira”, espécie de orquestra ou de riso aconchegante.
Natália Constâncio pertence ao grupo de investigadores ligados ao “Atlas das Paisagens Literárias de Portugal Continental”.
Esta é a oitava crónica da série “Escrita com Asas”.