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Como nasce um lince-ibérico

05.04.2016

Dezenas de jovens linces-ibéricos estão a ser libertados na natureza em sete regiões da Península Ibérica, no âmbito de um dos maiores projectos de conservação da Europa. A maioria nasceu em centros de reprodução em cativeiro. A Wilder esteve no único centro português, em Silves, e assistiu ao nascimento de três deles.

 

O calendário diz que hoje é dia 28 de Março de 2015. Os portões do Centro Nacional de Reprodução de Lince-Ibérico (CNRLI) abrem-se e entramos neste complexo conservacionista onde, desde 2009, já nasceram 74 linces-ibéricos (22 não viriam a sobreviver).

Está sol e um vento fraco agita as giestas e estevas neste recanto silencioso do interior algarvio, nos arredores de Silves. Pouco mais se move e se ouve. O mundo ficou lá fora.

 

Uma das casas do CNRLI, onde os voluntários ficam alojados

 

Instintivamente, esforçamo-nos por detectar um sinal de linces, uma das espécies mais raras da Europa e do mundo. Um som. Nada.

Ao chegarmos ao coração do CNRLI, a sala de vídeo-vigilância, tudo muda. Seis ecrãs de computador mostram em tempo real os linces que vivem no centro. São imagens transmitidas pelas 21 câmaras de vídeo-vigilância instaladas nos cercados, lá em baixo no vale, a muitas centenas de metros de distância desta sala.

 

Sala de video-vigilância do CNRLI

 

Há linces em todos os monitores, lá fora nos cercados ou dentro das caixas parideiras a cuidar das crias com poucos dias de vida.

Mas Fresa é o centro das atenções. É a última fêmea a dar à luz este ano. Tudo está a postos para que o parto aconteça a qualquer momento. Até agora este ano já nasceram oito crias em Silves.

A época dos nascimentos é o culminar de um ano de trabalho para a equipa de 13 pessoas que garante o funcionamento do centro e para os voluntários. O grande objectivo é conseguir crias saudáveis, treiná-las para a liberdade e, meses depois, soltá-las na natureza, para que novas populações de linces voltem aos territórios de onde se extinguiram há décadas. E tudo isto começa em momentos como este.

Quando nasce, um lince-ibérico pesa 180 gramas. Cabe na palma da mão. Tem os olhos fechados, as unhas ainda não são retratáveis e a sua pelagem impermeável vai desaparecer passada uma semana.

Nereida Sanchez Rico sabe. É tratadora no centro, juntamente com outros cinco colegas, e já assistiu a vários nascimentos nesta sala de vídeo-vigilância.

 

Datas previstas de parto para 2015

 

A noite caiu e, às 22h15, está aqui, mais uma vez à espera, com uma chávena de chá quente nas mãos. Há sempre equipas de dois vídeo-vigilantes e um tratador de serviço. Nereida, 30 anos, está a acabar o seu turno, com os vídeo-vigilantes voluntários Sheila, Ivo e Miguel, de olhos postos nos ecrãs.

Fresa entrou em trabalho de parto há algumas horas, dentro da caixa parideira instalada no seu cercado com mil metros quadrados, um dos 16 que existem no centro. Agora sonha e estremece as patas da frente. A sua respiração pesada ouve-se por toda a sala. Deste lado, apenas o chiar de uma ou outra cadeira.

Esta é uma sala pequena. Dá à justa para um sofá azul-escuro de três lugares, cinco ou seis cadeiras e uma mesa comprida com os seis ecrãs de computador.

A caixa parideira onde Fresa está desde as 20h20 também parece pequena, com os seus 50 centímetros de altura por 90 centímetros de comprimento. Fresa é a maior fêmea de Silves, com 14 quilos. Já teve seis crias desde que aqui está. “Ela está tranquila. Ela sabe o que faz”, diz Nereida, sem tirar os olhos do ecrã, de um grande plano das barbas e das orelhas com pelos em forma de pincel nas pontas.

Rodrigo Serra chega de repente e olha para os ecrãs. “Então, como é que ela está?”. Rodrigo, 40 anos, é veterinário e o director técnico do CNRLI. Deve ser a pessoa em Portugal que já teve mais linces nas mãos. “Está com contracções não expulsivas”, responde Sheila, 24 anos.

Às 22h42 Fresa estica-se e boceja. Sheila termina o seu turno e é substituída por Miguel e Ivo que vão ficar até às 07h00.

 

Sheila comunica com os tratadores nos cercados

 

Agora são 00h00 e Fresa já não parece tão tranquila. “Está a fazer obras”, explica Rodrigo, ao mesmo tempo que o animal escava com as patas e os dentes um buraco no fundo de cortiça da caixa parideira onde ficarão as crias assim que nascerem. Faz a sua higiene. Está a preparar-se.

Este ano, Biznaga e Fruta já tiveram três crias cada uma. Artemisa teve uma cria e Flora teve outra. Era teve duas crias que morreram nos primeiros instantes.

Entretanto amanheceu e Fresa continua na caixa parideira. Jan Valkenburg, tratador, Verónica Madeira, vídeo-vigilante e Ana, voluntária, estão na sala atentos ao evoluir da situação.

O tempo passa e chegam mais técnicos do centro. Deve estar quase. Há pessoas sentadas e outras de pé encostadas às paredes. Já passa das 13h15 e alguns decidem ir almoçar “qualquer coisa” a correr ao restaurante que fica fora do centro mais à frente, à beira da estrada.

Ainda o almoço vai a meio, Rodrigo recebe um telefonema. “Rebentaram as águas”. A pressa transforma-se em urgência. O café desce quase a ferver pela garganta e as contas acertam-se depois. “Welcome to our life”, diz Rodrigo, piscando o olho. O carro voa pelo alcatrão às curvas, perante as impávidas giestas que cobrem os montes e os vales.

 

Rodrigo Serra a caminho do centro para assistir ao parto da Fresa

 

Às 13h50 a sala de video-vigilância ainda está mais cheia. Fizeram-se telefonemas e os restantes técnicos do centro que estavam de folga também quiseram vir. Jan está sentado em cima da mesa onde estão os monitores. Nereida, Verónica e Ana estão “aos comandos” à mesa. Este é o seu turno. Atrás delas, Sheila, Rodrigo e Ivo acomodam-se no sofá. Miguel prefere ficar de pé junto à porta.

Fresa está a arfar e volta-se várias vezes na caixa. “Vá lá miúda, sequências de cinco. Vá, isso mesmo”. Rodrigo chega-se mais à frente, sentando-se à pontinha do sofá azul escuro, para ficar mais perto dos ecrãs. Vai contando as contracções. Vai falando com Fresa.

Até que, de repente, acontece. Há mais um lince-ibérico no mundo.

 

 

Com os seus 180 gramas a rebolar para o fundo da caixa parideira, numa confusão de patas, caudas, cabeça de orelhas em pincel a embater na câmara de vídeo-vigilância dentro da caixa parideira. Na pequena sala de coordenação ouve-se o alívio e a alegria, dão-se palmadas nas costas e abrem-se sorrisos por mais uma missão cumprida.

Hora provável do parto, 14h17. Mas não há tempo para distracções. É preciso confirmar se a cria está bem, ouvi-la e tentar ver os seus primeiros movimentos. “Ora, como de costume, a Fresa não nos mostra nada. Tens de pôr a câmara no fundo da caixa”, brinca Rodrigo para Jan, quem instala e mantém as caixas parideiras. “Já mostrou a cabeça, viste?”, pergunta Jan. Uma minúscula cabeça felina aparece por segundos entre as patas da mãe, torcida para trás, a lamber a sua cria com todo o cuidado. Pouco depois, a cria está a mamar, o que é um bom sinal.

Mas será que Fresa terminou? Às 14h23, novas contracções consecutivas. Tudo acontece tão rápido. Às 14h44, nasce uma segunda cria. “Bravo Fresa”! “São Calabacins a monte!”, sendo Calabacín o nome do lince “pai”.

E, tal como num jogo de futebol em que somos vencedores, só pedimos mais um. E Fresa concede-nos o pedido às 15h12, com a sua terceira cria. Resultado final: três crias de lince e 12 olhares embasbacados perante um dos acontecimentos mais raros do mundo natural. O nascimento de um felino Em Perigo de Extinção.

 

 

Este foi um dia muito especial. Em Silves nasceram três crias, exactamente como há dez anos, quando nasceram os primeiros linces-ibéricos em cativeiro no mundo: Brezo, Brisa e Brezina. A 28 de Março de 2005, no centro de El Acebuche, no Parque Nacional de Doñana (Espanha), Saliega deu à luz estas três crias, e nesse momento abriu-se um novo caminho no esforço conservacionista para salvar a espécie da extinção. Nesses anos, a população mundial de lince-ibérico estava reduzida a 200 animais, dos quais só 30 eram fêmeas reprodutoras. Hoje existirão cerca de 400 linces.

Dez anos depois de Saliega, Fresa continua a dar esperanças à sua espécie.

 

[divider type=”thick”]Série “Como nasce um lince-ibérico”

Uma equipa da Wilder esteve dois dias no CNRLI em Março do ano passado e assistiu ao último parto da temporada, ao lado de veterinários, tratadores, video-vigilantes e voluntários. Ao longo dos próximos dias vamos mostrar-lhe como é o trabalho naquele centro e quem são as pessoas por detrás da reprodução em cativeiro desta espécie.

Helena Geraldes

Sou jornalista de Natureza na revista Wilder. Escrevo sobre Ambiente e Biodiversidade desde 1998 e trabalhei nas redacções da revista Fórum Ambiente e do jornal PÚBLICO. Neste último estive 13 anos à frente do site de Ambiente deste diário, o Ecosfera. Em 2015 lancei a Wilder, com as minhas colegas jornalistas Inês Sequeira e Joana Bourgard, para dar voz a quem se dedica a proteger ou a estudar a natureza mas também às espécies raras, ameaçadas ou àquelas de que (quase) ninguém fala. Na verdade, isso é algo que quero fazer desde que ainda em criança vi um documentário de vida selvagem que passava aos domingos na televisão e que me fez decidir o rumo que queria seguir. Já lá vão uns anos, portanto. Desde então tenho-me dedicado a escrever sobre linces, morcegos, abutres, peixes mas também sobre conservacionistas e cidadãos apaixonados pela natureza, que querem fazer parte de uma comunidade. Trabalho todos os dias para que a Wilder seja esse lugar no mundo.

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