Foto: Mário Boieiro

Guardiões das Flores: Polinizadores fora da caixa

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Existem muitos polinizadores surpreendentes. Fique a conhecê-los nesta nova crónica da série Guardiões das Flores, uma parceria entre a Wilder e o projeto PolinizAÇÃO, do CFE – Centro de Ecologia Funcional da Universidade de Coimbra.

Quando pensamos em polinizadores, dificilmente imaginamos caracóis, répteis, aves ou mamíferos. Contudo, estes heróis inesperados têm um papel crucial nos ecossistemas. A polinização, essencial para os ecossistemas naturais e produção de alimentos, é geralmente associada a abelhas, borboletas, moscas e escaravelhos. Porém, existem outros polinizadores “fora da caixa”, frequentemente ignorados.

Formigas: Ladras de néctar ou aliadas?

As formigas são geralmente vistas como ladras de néctar, sendo pouco eficientes no transporte de pólen. Contudo, na deambulação em busca daquela bebida doce segregada pelas flores, podem contribuir para a polinização. O número de plantas que polinizam é baixo, aparentemente devido às secreções de uma glândula presente nestes pequenos insetos que os protege contra infeções, mas que em contrapartida reduz a viabilidade do pólen. 

Ainda assim, há exceções: algumas plantas, resistentes a essas secreções, têm as formigas como principais polinizadoras. Geralmente autocompatíveis e autopolinizadas — ou seja, são fertilizadas pelo próprio pólen sem necessidade do pólen de outras plantas — apresentam flores pequenas e abertas, comuns em habitats secos ou alpinos (localizados a grandes altitudes), onde as formigas são abundantes. Um exemplo desta interação é a polinização da planta Naufraga balearica, uma espécie criticamente ameaçada que ocorre apenas na ilha espanhola de Maiorca, no Mediterrâneo. 

No caso das formigas, é muito raro promoverem a polinização cruzada – a transferência de pólen entre flores da mesma ou de diferentes plantas – pois estas regressam normalmente à mesma planta; porém, a elevada frequência de visitas compensa essa limitação.

Formiga da espécie Lasius grandis a visitar flores de Ranunculus cortusifolius, planta endémica da Macaronésia. Foto: Mário Boieiro.

Joaninhas: Polinizadores improváveis

Conhecidas pelo apetite voraz por pulgões e cochonilhas, as joaninhas são importantes no controlo de pragas agrícolas. No entanto, estas pequenas aliadas também visitam flores para se alimentar de pólen, o que é uma parte essencial da dieta de algumas espécies, como a joaninha-de-dezasseis-pintas (Tytthaspis sedecimpunctata). Para a maioria das espécies, após a hibernação, quando há escassez de presas o pólen torna-se uma fonte vital de alimento e um reforço nutricional, que as ajuda a alcançar os seus habitats preferidos e iniciar a reprodução.  

Joaninha da espécie Hippodamia variegata a visitar flores da salsinha-das-areias (Seseli tortuosum). Foto: Olga Ameixa

Durante estas visitas às flores, o pólen adere ao corpo das joaninhas e vai sendo assim transferido para outras flores, contribuindo para a polinização. A famosa joaninha-das-sete-pintas (Coccinela septempunctata) é um dos principais polinizadores da planta ameaçada Disanthus cercidifolius, na China, e tem um papel reconhecido na produção das deliciosas mangas. 

Pode ajudar-nos a compreender melhor por onde “voam” estes polinizadores fora da caixa! Basta descarregar a aplicação “European Ladybirds” e contribuir para o mapeamento das joaninhas em Portugal, de forma simples e rápida. 

Vespas: Subestimadas e mal-amadas

Embora vistas como agressivas e predadoras vorazes, as vespas também desempenham um papel na polinização. Tal como as abelhas, visitam flores para se alimentarem de néctar, mas são contudo menos eficientes como polinizadoras devido à ausência de pêlos no corpo, aos quais o pólen conseguiria aderir mais facilmente. 

Ainda assim, em ambientes urbanos, onde outros polinizadores são escassos, vespas como as vespas-do-papel, do género Polistes, conseguem prosperar. Um exemplo notável de polinização por vespas é o mutualismo entre a figueira, Ficus carica, e a pequena vespa-do-figo, Blastophaga psenes. A figueira é uma árvore que produz figos masculinos e femininos em árvores separadas. Os figos ou sicónios possuem no seu interior pequenas flores. Enquanto que os figos masculinos possuem flores femininas de estilete curto, onde a vespa deposita os ovos, e também flores masculinas que produzem pólen, os figos femininos contêm apenas flores femininas, inadequadas para a postura de ovos. 

Após emergirem dos figos masculinos, as pequenas vespas adultas, carregadas de pólen, procuram figos femininos recetivos para a oviposição. Durante este período, ambos os tipos de figo emitem um odor semelhante, impossibilitando-as de distinguir entre figos masculinos e femininos. Este processo é essencial para a formação dos figos maduros e é um exemplo de coevolução, em que a figueira e vespa evoluíram juntas, influenciando-se mutuamente. Atualmente, dependem uma da outra para se reproduzirem.

Surpreendentemente, estudos recentes revelaram que a temida vespa asiática (Vespa velutina subsp. nigrithorax) se alimenta de pólen e néctar de algumas plantas, como por exemplo do funcho (Foeniculum vulgare), parecendo assim atuar também como um polinizador. 

Aves: Penas e pólen, uma parceria improvável

A polinização por aves, chamada ornitofilia, ocorre em cerca de 10.000 espécies de plantas, sobretudo em regiões tropicais e temperadas do Hemisfério Sul. Muitas destas plantas evoluíram ao longo do tempo para atrair aves nectarívoras, apresentando flores vermelhas, com néctar abundante, diluído e sem odor. 

Embora as  aves nectarívoras se tenham extinguido na Europa há mais de 23 milhões de anos, durante o Oligoceno, várias aves insectívoras continuam hoje a visitar flores. No Mediterrâneo, por exemplo, a leguminosa Anagyris foetida é polinizada por espécies como a toutinegra-de-barrete (Sylvia atricapilla), toutinegra-dos-valados (Curruca melanocephala) e felosa-comum (Phylloscopus collybita), recebendo esporadicamente visitas de outras espécies como o chapim-azul (Cyanistes caeruleus). Nas Canárias e Madeira, algumas plantas também são polinizadas por aves da família Sylviidae, como a toutinegra-de-barrete e a toutinegra-dos-valados. 

Em Portugal, estudos mostraram que mais de 50% das aves analisadas transportavam pólen de mais de 60 plantas, maioritariamente nativas. Porém, o pólen mais comum foi o de eucalipto, que curiosamente na Tasmânia, a sua região de origem, é polinizado por aves. Além disso, a capacidade das aves de se manterem ativas a temperaturas mais baixas permite-lhes  polinizar plantas em condições mais adversas, por exemplo em altitudes elevadas ou durante o inverno, desempenhando um papel essencial na manutenção desses ecossistemas. 

Felosa-comum (Phylloscopus collybita). Foto: Bernard DUPON

Morcegos: Voadores noturnos ao serviço das flores

A quiropterofilia é a polinização realizada pelos morcegos e é comum nas regiões tropicais e subtropicais, especialmente entre os morcegos que preferem néctar ou pólen a insetos. Esta polinização beneficia muitas plantas, já que estes mamíferos voadores transportam maiores quantidades de pólen e percorrem distâncias mais longas, à semelhança das aves. 

Para usufruírem da ação dos morcegos, algumas espécies produzem flores que abrem durante a noite, mais ricas em néctar, enquanto que aqueles apresentam adaptações como uma dentição menor e focinhos e línguas mais longas. Aliás, o recorde de maior proporção entre tamanho da língua e corpo em mamíferos pertence ao morcego nectarívoro Anoura fistulata, cuja língua pode ser 1,5 vezes maior que o corpo! Por cá, em Portugal, os morcegos são insectívoros. 

Morcego Leptonycteris curasoae, uma espécie presente na América Central e do Sul. Foto: U.S. Fish and Wildlife Service Headquarters

Répteis: Quando os lagartos ajudam as plantas

Saurofilia é o nome dado à polinização realizada por répteis, que ocorre principalmente em ilhas oceânicas. Os primeiros registos de saurofilia foram efetuados na ilha da Madeira, nos anos 70, quando a lagartixa endémica Teira dugesii – conhecida por lagartixa-da-madeira – foi observada a visitar as flores de plantas endémicas e introduzidas. Desde então, há relatos envolvendo outros lagartos da mesma família (Lacertidae), bem como de indivíduos das famílias Gekkonidae, representada por exemplo em Portugal pela osga-comum, e Scincidae, à qual pertence  a cobra-de-pernas-pentadáctila. Contudo, não há registos de que tanto a osga-comum como a cobra-de-pernas-pentadáctila desempenhem um papel significativo na polinização, ao contrário da Teira dugesii. 

A predominância da saurofilia em ilhas parece dever-se à necessidade destes répteis de explorarem outra fonte nutricional devido à escassez de insetos, o seu principal alimento. Por exemplo, nas ilhas Baleares a planta Euphorbia dendroides é polinizada pela lagartixa endémica Podarcis lilfordi, que é predominantemente insectívora. 

Lagartixa-da-madeira, Teira dugesii, a visitar flores de Echium candicans, planta endémica da ilha da Madeira. Foto: Mário Boieiro

Caracóis e lesmas: Polinizadores viscosos e discretos

A malacofilia, ou polinização por caracóis e lesmas, é muito rara, mas ocorre em algumas espécies. Por exemplo, em Cabo Verde foi observado o papel do caracol Leptaxis bollei na polinização da planta Campanula jacobaea. Um estudo na Índia relatou ainda que a planta Volvulopsis nummularium da família Convolvulaceae, nativa da Améria tropical, é polinizada quer por abelhas (Apis cerana), quer por caracóis (Lamellaxis gracile). E porque será que as plantas necessitam de dois tipos diferentes de polinizadores? A resposta parece dever-se ao facto de que durante a chuva as abelhas estão inativas enquanto que os caracóis permanecem ativos, garantindo a polinização cruzada e maximizando o seu sucesso reprodutivo.

Caracol Leptaxis bollei a visitar a planta Campanula jacobaea. Fotografia do artigo científico “Snails in the flowers of Campanula jacobaea C.Sm. ex Webb (Campanulaceae) from the island of São Nicolau, Cabo Verde archipelago”, aqui disponível

Todos estes polinizadores “fora da caixa” – e muitos outros não mencionados aqui – mostram que a polinização pode ser realizada por uma variedade de animais em diferentes ecossistemas, complementando ou substituindo os insetos polinizadores mais comuns, como as abelhas. Proteger estas espécies, as suas interações e os seus habitats é, assim, essencial para preservar o equilíbrio dos ecossistemas e garantir a nossa sobrevivência.


Olga Ameixa trabalha como investigadora no Centro de Estudos do Ambiente e do Mar (CESAM) e do Departamento de Biologia da Universidade de Aveiro. Nesta crónica também colaboraram como autores António Soares, Isabel Borges, Mário Boieiro, Luís Silva e Sílvia Castro. Carolina Caetano e Cândida Ramos, da Universidade de Coimbra, fizeram a revisão do artigo. O texto foi também revisto por Inês Sequeira (Wilder).

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