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Fêmea de Lampyris iberica. Foto: Lourenço Vale

Histórias de conservação: Gonçalo criou uma rede de reservas para proteger os pirilampos

01.10.2024

São hoje 16 as reservas Lightalive em Portugal, uma rede que existe desde 2018 para conservar os pirilampos, iniciativa de Gonçalo Figueira, antropólogo que se especializou nestes fascinantes escaravelhos.

As cerca de 10 espécies de pirilampos que actualmente se conhecem em Portugal podem encontrar abrigo seguro em 16 reservas espalhadas pelo país, nomeadamente em Mafra (2 reservas), Porto (2), Sintra (2), Rogil (2), Faro, Cantanhede, Reguengos, Leiria, Palmela, Coruche, Viseu e Paços de Ferreira.

Fêmea de Lampyris iberica. Foto: Lourenço Vale

Estas reservas “são espaços públicos ou privados onde se conservam pirilampos e outras formas de biodiversidade”, explicou à Wilder Gonçalo Figueira, 46 anos, antropólogo de formação e especialista em pirilampos. “Os pirilampos são aqui usados como espécie-bandeira que levam à proteção de todo um ecossistema, rico em diversas espécies.”

Variando entre as poucas centenas de metros quadrados e os 50 hectares, nestas reservas a prioridade é proteger as zonas chave onde ocorrem as espécies que se querem preservar.

“Em particular deve ser garantida a integridade da manta morta em locais críticos, pois é esta que abriga os pirilampos durante praticamente todos os seus estágios de desenvolvimento”, acrescentou Gonçalo Figueira. 

Outra medida importante é conservar as zonas húmidas, como por exemplo reabilitar a vegetação ripícola e os habitats ribeirinhos. Isto porque os pirilampos e suas presas (sobretudo gastrópodes) são espécies sensíveis à desidratação, um problema que tende a agravar-se com o aumento do número de anos com precipitações abaixo do normal e com temperaturas acima da norma, situação que se tem verificado nos últimos 20 anos em Portugal continental, segundo Gonçalo Figueira.

Larva de Lamprohiza paulinoi. Foto: Luis Guilherme Sousa

O responsável pelas reservas Lightalive recorda que um estudo realizado na Estremadura durante cerca de 15 anos concluiu que, “pelo menos no caso das populações de pirilampo estudadas, a destruição do habitat – sobretudo devido à destruição e remoção da manta morta e do respetivo coberto vegetal – foi de longe a causa maior de desaparecimento ou declínio” destes escaravelhos. Apenas um caso se deveu a alterações climáticas.

Gonçalo Figueira recordou o caso de uma reserva que foi retirada da lista Lightalive porque o seu proprietário desrespeitou o acordo e colocou luzes artificiais de forma excessiva e fez a remoção de húmus. O resultado foi a extinção dos pirilampos locais.

Nas reservas “também pretendemos usar o mínimo de luzes necessário para não confundir os pirilampos (e outros animais) e também para permitir a observação astronómica”.

Outra tarefa feita nestas reservas é a monitorização dos pirilampos. Pelo menos uma vez por ano, “os proprietários têm que enviar-nos um pequeno resumo básico com algumas observações da fase reprodutiva dos adultos (e são frequentes os casos em que nos enviam mais do que isso)”.

Larva de Lamprohiza paulinoi. Foto: Luis Guilherme Sousa

Todo este trabalho de conservação é ainda transmitido a outras pessoas, através de acções de educação ambiental e visitas guiadas abertas ao público em algumas das reservas. Nestas acções é sublinhada a importância, por exemplo, de evitar o excesso de luzes artificiais e de fazer uma manutenção sustentável dos espaços verdes.

Um interesse que vem desde criança

Gonçalo Figueira conta que o seu interesse pela natureza vem desde muito cedo. “Cresci numa pequena quinta onde viviam muitos animais, entre os quais pirilampos, que acabei por começar a estudar e a monitorizar ao longo dos anos. Também fui motivado por cartazes educacionais que foram colocados nas paredes da sala de aulas da minha escola primária, que descreviam algumas espécies raras de Portugal, entre as quais o lobo-ibérico, a perdiz-cinzenta, o lince-ibérico, a abetarda e o salmão.”

Gonçalo Figueira em trabalho de campo em Rio de Onor, Parque Natural de Montesinho. Foto: D.R.

A dedicação aos pirilampos aconteceu “de forma acidental”. “Desde muito cedo eu costumava de sair para o campo e, por vezes, encontrava pirilampos (mesmo dentro do meu jardim) sem estar à espera o que me deixava muito intrigado. Ao longo dos anos, fui acumulando dados sobre várias populações e após contatar alguns investigadores, estes sugeriram-me que começasse a investigar os pirilampos de Portugal. A partir daí, comecei a sair para o campo para procurar pirilampos propositadamente. O mistério que encerra o seu modo de vida, os rumores de que estão a desaparecer e, claro, a sua luz viva e ultra eficaz, sempre me motivaram a continuar a investigá-los.”

Em 2008, a família de Gonçalo Figueira adquiriu um terreno em Óbidos que imediatamente se tornou palco de experiências de campo para monitorização e conservação. “Já na altura ocorriam por lá pirilampos, ainda que não fossem tão comuns como hoje.” Pouco depois começou a tomar forma a ideia de uma rede de reservas para proteger os pirilampos. “A ideia de incluir mais participantes surgiu em 2017, tendo-se concretizado em 2018. O número de locais protegidos não pára de aumentar, tendo-se juntado à lista mais sete, só nos últimos dois anos”, explicou.

As reservas Lightalive funcionam graças à dedicação de Gonçalo Figueira e de todos os proprietários das reservas. “Eu apenas criei este conceito. Faço a gestão da minha reserva, recebo as mensagens dos proprietários referentes à monitorização que eles próprios realizam nas suas reservas e ajudo-os a esclarecer dúvidas sobre o comportamento, a ecologia e a identificação das espécies.” O seu objectivo é, “além de uma rede de reservas, criar uma rede de gestores ambientais e investigadores”.

Larva de Lamprohiza paulinoi. Foto: Luis Guilherme Sousa

E este trabalho é cada vez mais importante, numa altura em que poderemos estar a registar uma tendência global para o declínio destas espécies. Ainda assim, Gonçalo Figueira sublinha que esta situação varia de região para região e pode mudar no tempo também.

“Em algumas décadas do século XX, por exemplo, vastas regiões eram ocupadas com agricultura intensiva e hoje são baldios ou matagais em progressão para floresta. Eu próprio testemunhei uma mudança na zona onde vivo, em Óbidos, num período de cerca de 14 anos; quando cheguei alguns vizinhos tinham pomares de produção intensiva onde não se viam pirilampos e hoje estes locais passaram a ser  matagais e descampados onde os pirilampos abundam. No lado oposto, em poucos anos, também testemunhei o declínio ou até desaparecimento completo de pirilampos em certas zonas suburbanas de Lisboa, nomeadamente nas frentes de expansão do urbanismo para o exterior, onde o mundo rural cede lugar aos avanços da cidade.” 

Novos projectos 

O futuro das reservas Lightalive passa, nos próximos tempos, por sensibilizar mais pessoas, por incluir novos locais para proteger e continuar a fazer investigação e monitorização. 

Macho de Nyctophila reichii. Foto: Ana Valadares

“Há alguns anos atrás, um dos objetivos era ter na nossa rede de reservas a maioria das espécies de pirilampos portugueses. Agora temos praticamente todas, pelo menos das que se sabem existir no nosso país”, contou Gonçalo Figueira. 

“Numa das reservas até temos o que é provavelmente o pirilampo mais raro de Portugal, o Phosphaenopterus metzneri que, tanto quanto se sabe, tem uma distribuição geográfica bastante reduzida, ocorrendo apenas em três regiões do nosso país. E mesmo localmente, nem sempre é fácil de encontrar, ocorrendo em baixas densidades populacionais e limitando-se a zonas húmidas de pequena dimensão que, devido às recorrentes secas, têm vindo a diminuir.”

O responsável avançou que pretendem também “melhorar os esforços de investigação e de monitorização”. “Por exemplo, na reserva que estou a gerir (Quinta de Óbidos), em 2018 encontrei acidentalmente um estafilinídeo bioluminescente (género Quedius), cuja capacidade de produzir luz nunca tinha sido observada (apenas se conheciam estafilinídeos luminosos no Brasil). Em 2020, observei e capturei uma larva luminescente também deste género (Quedius) perto de Serpa, o que solidificou a ideia de que este género tem representantes bioluminescentes em diferentes partes do país. Isto também reforçou a noção de que ainda existem muitas coisas por descobrir e que a solução deverá ser continuar a investigar.”


Agora é a sua vez.

Saiba aqui como atrair pirilampos (e como os manter) num espaço verde.

Descubra aqui seis coisas sobre os pirilampos de Portugal.

Helena Geraldes

Sou jornalista de Natureza na revista Wilder. Escrevo sobre Ambiente e Biodiversidade desde 1998 e trabalhei nas redacções da revista Fórum Ambiente e do jornal PÚBLICO. Neste último estive 13 anos à frente do site de Ambiente deste diário, o Ecosfera. Em 2015 lancei a Wilder, com as minhas colegas jornalistas Inês Sequeira e Joana Bourgard, para dar voz a quem se dedica a proteger ou a estudar a natureza mas também às espécies raras, ameaçadas ou àquelas de que (quase) ninguém fala. Na verdade, isso é algo que quero fazer desde que ainda em criança vi um documentário de vida selvagem que passava aos domingos na televisão e que me fez decidir o rumo que queria seguir. Já lá vão uns anos, portanto. Desde então tenho-me dedicado a escrever sobre linces, morcegos, abutres, peixes mas também sobre conservacionistas e cidadãos apaixonados pela natureza, que querem fazer parte de uma comunidade. Trabalho todos os dias para que a Wilder seja esse lugar no mundo.

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