Todos os meses, o projecto “Atlas das Paisagens Literárias de Portugal Continental”, ligado à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, dá-lhe a conhecer as paisagens e a biodiversidade que povoam as obras literárias de escritores portugueses.
“Sim, eram castanheiros. Bons gigantes.
Povoavam gravemente as encostas da serra
como se reinassem sobre elas um reinado
benevolente, mais antigo que a soma
dos séculos – vindos e por vir.
À generosa sombra estival dos castanheiros
descansámos, brincámos, namorámos,
fizemos tudo o que quisemos fazer,
digo: tudo o que precisava de ser feito
– e eles a sorrir para nós como um avô.
Depois, pelo Outono, os castanheiros
amorteciam-se, solidários com o resto do bosque,
mas não sem antes nos encher bolsos e boinas
do peso do seu fruto, com a simplicidade
com que oferecemos de beber a quem nos passa à porta.
Onde estão hoje os castanheiros
dessas impetuosas manhãs irrepetidas?
Gastaram-se: deram-nos a arena, a sombra e o fruto,
pedindo pouco em troca – e depois
alguém os abateu com seu machado.
Sim, eram castanheiros. Hoje são mobília,
tonéis, soalhos, traves que sustêm
telhados. Têm serventia mesmo mortos
os castanheiros que foram tanta vez
nossa segunda casa, ao lado das searas.”
A.M. Pires Cabral, Frentes de Fogo
Comecemos pelo título do poema — “Sim, eram castanheiros” —, e logo uma nota de nostalgia se solta. O tempo verbal aponta para o passado. Mas, então, não existem ainda? Sim, existem, mas não os que o poeta transmontano conheceu. Esses, como refere o poema, “Hoje são mobília, / tonéis, soalhos, traves que sustêm / telhados”. A. M. Pires Cabral não pretenderá insurgir-se contra a existência, necessária e útil, de tais objetos e coisas, mas, antes, dar conta de que, enquanto seres humanos, podemos ser habitados por árvores. (Não é de Ruy Belo o verso: “sentia a grande falta de uma árvore” e que, por isso pensou, “plantar […] uma árvore na [sua] vida”?)
O poeta não o diz claramente, mas, sabemo-lo, esses “bons gigantes” teriam povoado as encostas da Serra de Bornes, em Macedo de Cavaleiros, lugar-origem de muita da sua criação literária. A partir da experiência vivida nas “impetuosas manhãs irrepetidas” da infância, o poeta inscreve na paisagem do poema a memória de castanheiros “ao lado das searas”. Particularmente aliciante é o uso, na primeira estrofe, de ‘gravemente’, advérbio que ajuda a visualizar o perfil intenso do castanheiro nas encostas da serra, realçando, também, o seu valor: o volume da copa — à sombra da qual “descansámos, brincámos, namorámos” —, a longevidade — “a sorrir para nós como um avô” —, a dádiva do seu fruto, que, “pelo outono” enchia “bolsos e boinas”.
O poema, representando uma espécie de mapa da imaginação do seu autor, pode constituir-se, também, um guia para pensar o território nele inscrito. Assim, a linguagem poética não deixa de ser um convite a uma observação mais apurada da Castanea sativa, espécie que existe na Península Ibérica desde muito antes dos romanos. Uma árvore que prefere solos profundos, frescos e permeáveis, e que encontra, em Portugal Continental, áreas de implantação felizes, tal como acontece em zonas da região de Trás-os-Montes. Nesta e noutras áreas serranas, e até meados do século XX, o castanheiro representou uma importante fonte de rendimento para as populações, pois gerava não só o fruto — “com a simplicidade / com que oferecemos de beber a quem nos passou à porta”, mas também a madeira, que, com o avanço da industrialização, era necessária a diferentes atividades. Hoje há menos castanheiros: nas últimas décadas, ações humanas, fungos e doenças várias contribuíram para um decréscimo do número dessas generosas sombras estivais nas encostas das serras transmontanas.
Todavia, ainda há castanheiros. O valor da sua madeira e do seu fruto e políticas de arborização concretas têm permitido a sua preservação. Ainda é possível ver os castanheiros incendiando a paisagem, no outono.
Sim, são castanheiros, pois os que no poema foram cortados com o machado “têm serventia mesmo mortos”, não só porque são úteis nas diferentes formas que tomaram, mas porque foram estímulo para o poeta e, agora, para os leitores desta crónica, que, neste outono, irão certamente perscrutar a paisagem à procura da sua grave, benevolente, generosa e colorida copa.
Isabel Fernandes Alves pertence ao grupo de investigadores ligados ao “Atlas das Paisagens Literárias de Portugal Continental”. Esta é a décima primeira crónica da série Escrita com Raízes.