Encontradas em Ferreira do Alentejo em Janeiro passado, com suspeitas de intoxicação ou envenenamento, as duas aves recuperaram no centro de reabilitação para fauna selvagem de Santo André.
Ainda juvenis, os dois milhafres-reais tiveram de ficar durante cerca de dois meses em tratamento no CRASSA – Centro de Recuperação de Animais Selvagens de Santo André, que é gerido pela Quercus.
Quando deram ali entrada, ambas estavam “muito debilitadas e desidratadas, não sendo capazes de se levantar nem de se alimentar”, descreve Carolina Nunes, bióloga ligada ao CRASSA. “Considerando os sinais clínicos, os hábitos alimentares da espécie e o facto de terem sido resgatados no mesmo local num curto espaço de tempo, a principal suspeita foi que as aves sofressem de intoxicação ou envenenamento.”
O milhafre-real (Milvus milvus) é uma das aves de rapina mais ameaçadas em Portugal. A população nidificante, que se reproduz no país, é considerada Criticamente em Perigo. Quanto aos milhafres que apenas passam o Inverno em Portugal e se reproduzem noutros países da Europa, estão em situação Vulnerável.
Dentro do centro, a equipa trabalhou para que os dois milhafres ficassem estáveis e se começassem a alimentar. “Felizmente, ao fim de poucos dias ambos já estavam capazes de se levantar e alimentar sozinhos”, conta a mesma responsável. Seguiu-se a passagem para instalações cada vez maiores, com espaço para treinarem o voo e incentivos para caçarem.
Finalmente, as duas aves foram libertadas a 10 de Abril na Estação Ornitológica Nacional, gerida pelo Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas. Tal como o CRASSA, esta estação faz parte da Reserva Natural das Lagoas de Santo André e da Sancha.
No Norte de Espanha
Mas antes de serem devolvidos à natureza, os milhafres foram equipados com dois emissores GPS fornecidos pelo projecto europeu LIFE Eurokite, que está a trabalhar para a monitorização e conservação desta espécie.
Passados poucos dias, quem os segue agora ao longe verificou que já estavam no Norte de Espanha, dirigindo-se ainda mais para norte. “O mais provável é voltarem para o Centro da Europa”, acredita Alfonso Godino, que está ligado à AMUS – Acción por el Mundo Salvaje. Esta organização não governamental de ambiente tratou da marcação e é parceira do projecto europeu.
“A marcação de milhafres-reais em Portugal é altamente importante para detecção do uso do espaço e que habitats utilizam, mas principalmente para a detecção de ameaças, que é o principal objetivo do LIFE Eurokite nos diversos países onde está a implementar acções”, sublinha o mesmo responsável.
Alfonso Godino nota que em Portugal foi detectada “uma elevada mortalidade” desta espécie no sul do país. Em apenas três meses, no Inverno passado, foram encontrados oito milhafres-reais mortos – para além dos dois agora recuperados. Assim, afirma, a marcação com GPS “deve ser uma acção altamente prioritária”, para identificar as ameaças à sobrevivência destas aves e aplicarem-se as medidas necessárias.
“Até agora, o envenenamento ou intoxicação parecem ter sido a principal ameaça detectada para o milhafre-real nestes últimos meses em Portugal, e principalmente no Alentejo”, salienta, lembrando que “o envenenamento é um crime contra a fauna e não só, mas também contra a saúde pública.”
Mais 10 a 15 emissores GPS
À partida, o projecto europeu deverá ainda disponibilizar mais 10 a 15 emissores GPS para a marcação de milhafres-reais em Portugal, no âmbito de um esforço que tem estado a ser feito em diversos países europeus.
No entanto, tudo vai depender da localização de milhafres-reais que pertençam à população nidificante, ou seja, que se reproduz em Portugal. Estes milhafres são considerados prioritários para a colocação de emissores, pois pouco se sabe sobre essas aves.
Mas o projecto não descarta marcar também milhafres da população invernante, que abrange a maioria dos milhafres-reais em Portugal. “Já contactámos os vários centros de recuperação distribuídos no país e temos o compromisso de fornecermos emissores para estas aves, caso nos avisarem sobre o ingresso e libertação de milhafres-reais”, indica o responsável da AMUS.
Contagens nos próximos cinco anos
Entretanto, Portugal foi um dos 21 países onde no início deste ano se fizeram contagens nos principais dormitórios de Inverno desta ave migradora. Esta acção coordenada pela Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves (SPEA), em colaboração com o LIFE Eurokite, deverá repetir-se nos próximos cinco anos.
De acordo com Julieta Costa, da SPEA, o objectivo é “ajudar o Eurokite a monitorizar as tendências dos milhafres-reais que nascem nos países do centro europeu e que no Inverno se deslocam para os países do sul”.
As contagens deste ano contaram com 19 voluntários e tiveram como alvo dormitórios em Trás-os-Montes e também no Centro do país e no Alentejo. O resultado apontou para um total de 582 a 591 aves da espécie, mas para já não deverá ser comparado com anos anteriores uma vez que estas contagens se fizeram apenas em 17 dormitórios.
Em 2020 realizou-se um censo nacional da população invernante, que deverá passar a repetir-se de dois em dois anos, explicou a mesma responsável. Em 2017, registou-se o número mais elevado de milhafres-reais contados até hoje em Portugal: um total de 2.200 aves.
Saiba mais
Recorde o caso destes cinco milhafres-reais encontrados mortos em Castro Verde, em Dezembro passado.
E veja estas imagens espantosas captadas pelo leitor José Manuel Vasconcellos de um milhafre-real, em Alter do Chão.