Todos os meses, o projecto “Atlas das Paisagens Literárias de Portugal Continental”, ligado à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, dá-lhe a conhecer as paisagens e a biodiversidade que povoam as obras literárias de escritores portugueses.
“— São andorinhões! andorinhões! Pretos como o carvão! É mau agouro!
Correram para o patamar e bateram à porta da dona Adélia, que tem remédio para tudo (…) Entraram-lhe em casa aos gritos, ele a arrastar os chinelos acalcanhados, pálido, atarantado, a segurar A Tarde sem saber, com uma interrogação assustada nos olhos incolores de amanuense, e ela com a mão cheia de andorinhões a debater-se pela liberdade no cheiro da cebola:
— Dona Adélia! Dona Adélia! Veja, veja! Pretos medonhos, agarrados ao cabelo! Isto é sinal de desgraça!
Mas que querem eles, porque vêm queixar-se, que remédio esperam?
— Ora, desgraça, que ideia. Uns bichinhos tão lindos, inocentes, que mal é que lhe podem trazer? Se o senhor fosse um santo, todos diriam que isto era milagre!
Olharam-na espantados, mais tranquilos. Foi-se à janela e soltou as avezinhas. Que lindo, vê-las esvoaçar, subir, ir misturar-se às outras no céu doirado!”
A Escola do Paraíso, de José Rodrigues Miguéis
Ao longo da história da humanidade, um pouco por todos os tempos e espaços, foram várias as conotações simbólicas e alegóricas atribuídas às aves. Como o excerto tão bem ilustra, estas conotações são muitas vezes ambíguas e paradoxais: os andorinhões são tidos ora como “medonhos”, ora como “uns bichinhos tão lindos, inocentes”.
Foi ao cair da tarde que uma revoada de andorinhões entrou pela janela e se embrenhou no cabelo do vizinho do narrador, enchendo a casa de inquietação e temor. A plumagem preta “como o carvão” destas aves indiciava mau agoiro, motivando exclamações aflitas e olhares desnorteados.
São inúmeras as superstições e imagéticas que aludem a animais pretos como presságios de morte ou infortúnio – sejam eles gatos pretos, os quais ocupam as primeiras páginas d’A Escola do Paraíso, corvos ou até as gralhas-pretas que povoam os cenários apocalípticos de outras representações artísticas, tais como o filme de Hitchcock Os Pássaros. Estas superstições remontam, provavelmente, à época medieval, numa altura em que tanto animais pretos, como animais noturnos (mochos, corujas, morcegos, etc.) estavam associados às trevas, à bruxaria, à morte.
Para além da cor, há um outro “sinal de desgraça”: estas aves ultrapassam uma fronteira espacial simbólica, a do espaço doméstico e privado, ao qual não pertencem. Após terem entrado pela janela, os andorinhões agarram-se aos cabelos, superstição conhecida mas mais frequentemente associada a morcegos.
Estas superstições e indícios de mau agoiro são, contudo, contraditos no próprio excerto pela dona Adélia: “Ora, desgraça, que ideia (…) que mal é que lhe podem trazer?” Em vez de medonhos, os andorinhões são descritos por ela como “inocentes” e com recurso a diminutivos (bichinhos, avezinhas), tranquilizando os vizinhos.
Pegando nos andorinhões, a dona Adélia aproxima-se da janela para os devolver à liberdade dos ares. Exímios voadores, os andorinhões passam a maior parte do seu tempo a deslizar nos céus, geralmente em bandos numerosos. Chegam até a comer, beber e dormir a voar, dando pouco uso às suas patas muito pequenas. A palavra grega apous, de onde deriva o nome da família a que pertencem, Apodidae, denota, aliás, esta característica. Significa “sem pés”.
É com os pés longe da terra, novamente em liberdade, que estes acrobatas velozes se juntam aos seus pares. E voejam bem alto, desenhando círculos num céu doirado, “como nos poemas”!
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Filipa Soares pertence ao grupo de investigadores ligados ao “Atlas das Paisagens Literárias de Portugal Continental”. Esta é a quinta crónica da série “Escrita com Asas”.
[divider type=”thin”]Saiba mais.
Fique a conhecer as três espécies de andorinhões de Portugal.