Higino Faria, vigia de cetáceos, conta-nos os inícios da baleação na Madeira e a sua evolução até ao whale watching dos nossos dias.
O Porto do Moniz foi a primeira localidade a acolher a caça à baleia no arquipélago da Madeira, em especial a do Cachalote (Physeter macrochepalus), tratando-se da espécie que sempre apresentou maior interesse económico.
Esta atividade foi introduzida na ilha por iniciativa de Francisco Marcelino dos Reis, negociante de óleo de cachalote e sócio em algumas fábricas açorianas, e Simplício dos Passos Gouveia, piloto na empresa Insulana de Navegação. A licença foi passada à companhia açoriana União das Armações Baleeiras de São Miguel, em 1939, sucursal depois convertida, a 2 de Dezembro de 1944, na Empresa Baleeira do Arquipélago da Madeira, maioritariamente composta, então, por vigias e baleeiros madeirenses recém-formados.
Em 1940 chega à ilha, vindo dos Açores, um primeiro vigia para fazer trabalho de observação e recolha de dados. Ainda neste ano são construídas duas vigias, uma em Machico, outra no Porto Moniz, e enviadas, em agosto, as baleeiras e suas tripulações.
A 2 de fevereiro de 1941 são capturados os primeiros dois cachalotes ao largo do Porto do Moniz. Estes animais são desmanchados na Ribeira da Janela, no Calhau das Pedras Vermelhas, onde fora instalado, no ano anterior, o traiól (instalação rudimentar onde se processava o toucinho de cachalote em óleo).
Nos cinco anos seguintes, vários vigias naturais da Madeira são formados por dois vigias açorianos e uma rede de vigias é montada em torno da ilha. Oito vigias de madeira, com cobertura de fibrocimento, construídas em vários pontos da ilha (Porto do Moniz, Ponta do Pargo, Ponta do Sol, São Martinho, Garajau, Machico, Caniçal e São Jorge) passam a garantir aos vigias um trabalho mais condigno e eficiente.
As autoridades locais decidiram, desde logo, passar esta atividade da vila do Porto do Moniz para a Ribeira da Janela, tudo indica que por questões sanitárias. No lado nascente da foz da ribeira, ainda podemos encontrar algumas infra-estruturas necessárias ao processamento dos animais: um acesso alternativo com túnel (usado nos dias de maior caudal da ribeira?), um poço para alimentar os tanques de arrefecimento do óleo e abrigos escavados na rocha para derreter o toucinho e guardar ferramentas de corte e tração (facões, cordames, ganchos, etc) dos cetáceos.
Quem descer e der a volta pelo calhau, no sentido da foz da ribeira, verá como as galerias escavadas no tufo de cinza vulcânica ainda se apresentam carbonizadas pela ação do fogo das caldeiras.
Regressando no tempo, poderá imaginar os animais a serem rebocados pelos cabrestantes e toda a azáfama envolvente e expectativa por verificar o proveito económico a retirar com a venda do óleo e do esparmacete das capturas.
A expectativa em verificar se estas continham alguma quantidade de âmbar cinzento era sempre grande. O âmbar cinzento é uma mistura de dentes de lula, outros detritos e secreções intestinais encontrada no estômago de uma percentagem baixa de cachalotes, mas que valia o seu peso em ouro, fosse a ser usada no fabrico de perfumes, fosse como matéria-prima para a medicina tradicional chinesa. Hoje em dia, o comércio, quase sempre secreto, deste produto exótico decorre apenas do seu achamento no mar ou nas praias. Vale a pena a visita a este local imponente e selvagem, que também é geosítio e uma importante zona de bird watching. Complete-a passando na Vigia, imóvel histórico situado por cima da vila do Porto do Moniz.
Segundo a pesquisa realizada por iniciativa do restaurante Cachalote para a criação de uma exposição permanente no interior das suas instalações, o Porto do Moniz teve cerca de vinte e cinco baleeiros. Destes, apenas um se encontra vivo, o senhor Manuel de Abreu, que desempenhou funções como baleeiro já depois da fábrica se mudar para o Caniçal, no extremo leste da ilha.
Quanto a vigias, não apuramos a identidade de nenhum vigia local, vivo ou já falecido, mas é provável que por entre este elenco de vinte e cinco homens, cujos rostos podem ser vistos na exposição, algum ou alguns dominassem o ofício de vigia, reunindo os atributos para manter a paciência infinita de patrulhar o Atlântico até à linha do horizonte em busca de cachalotes.
Tal como nos Açores, o lançamento e rebentamento de um foguete a partir da Vigia chamava os baleeiros, ocupados com o sustento da terra, para a difícil faina no mar. A técnica utilizada para dar a posição correta do animal em relação à embarcação consistia no uso de um grande lençol atado a duas varas. O vigia, ou os vigias, giravam a bandeira, visível do mar, para um lado ou para o outro consoante a posição do animal em relação à proa da baleeira.
Depois desta fase experimental a norte, tendo se verificado serem árduas as condições de navegação e visibilidade, a baleação passou a ser desenvolvida no sul, ficando o Porto do Moniz, no entanto, como ponto de monitorização e porto de saída de baleeiras sempre que os cachalotes aparecessem. A baleação começou a norte porque os homens que investiram nesta atividade estavam convencidos de que os cachalotes do Atlântico norte deslocavam-se de nordeste para sudoeste.
Hoje, a ecologia do maior carnívoro do planeta continua envolta em incertezas em termos populacionais. Sabe-se, contudo, que os machos efetuam rotas longas para norte na primavera-verão e para sul no outono-inverno. Quanto mais velho o animal mais longas parecem ser as migrações. As fêmeas preferem as águas meridionais para cuidar das crias e liderar os juvenis e evitam percorrer distâncias tão longas.
Whale watching no Porto do Moniz
Encerrado o capítulo da caça à baleia em 1986, os cetáceos passaram a ocuparam um lugar especial na memória do povo do Porto do Moniz, terra onde a baleação começou no arquipélago da Madeira, e a constituir um elemento identitário muito importante do ponto de vista antropológico e mesmo económico, apesar do whale watching ter sido uma realidade a norte só muito recentemente. Há décadas que vários negócios locais usam a temática dos cetáceos na promoção dos seus serviços e produtos. Não é raro encontrar turistas no Porto do Moniz munidos de binóculos a vasculhar o mar, imbuídos por um naturalismo amador fomentado pela imagem de marca local: a biodiversidade marinha.
Consequentemente, e depois de uma empresa de referência na ilha já ter feito algumas saídas pioneiras a partir deste porto em anos anteriores, uma outra empresa de whale watchingdecidiu, em 2019, arriscar a sua sorte a norte e fixar neste concelho o grosso da sua atividade. Apesar de as condições de navegabilidade não serem as mesmas do sul, a beleza indescritível da ilha vista de trás atraiu dezenas de entusiastas da natureza e dos cetáceos. O contraste entre o verde da floresta Laurissilva: património natural da UNESCO; rasgada, aqui e ali, por dezenas de cascatas, e o azul selvagem do oceano lembram-nos o porquê da Madeira ser conhecida pelo mundo fora como o ”Jardim flutuante do Atlântico”.
Eu e os meus colegas fizemos várias sessões de vigia entre São Vicente e Ponta do Pargo, a maioria com sucesso. Dada essa grande oportunidade, entre junho e outubro partilhamos avistamentos de roazes (Tursiops truncatus), baleias-de-bico-de-blainville (Mesoplodon desinrostris), baleias-piloto (Globicephala macrorynchus), baleias-sardinheiras (Balaenoptera borealis), golfinhos-pintados (Stenella frontalis), golfinhos-comuns (Delphinus delphis) e golfinhos-riscados (Stenella coeruleoalba). Só não tivemos sucesso a garantir baleias-de-bico-de-cuvier (Ziphius cavirostris), fascinantes animais que observei várias vezes nas imediações de golfinhos-riscados bem por fora do Ilhéu do Moniz, fenómeno que já presenciei, igualmente, no sul, e que poderia motivar um estudo por parte dos biólogos marinhos. Observei, durante um dos avistamentos, a várias milhas de distância, e com nitidez devido às boas condições de luz que se faziam sentir, um grande cetáceo a sair da superfície do oceano, mostrando-se por inteiro. Tratou-se de um macho desta espécie surpreendente a efetuar um comportamento de socialização ou acasalamento, mais frequente nos meses de verão. O tempo que estas baleias com dentes passam no fundo inviabiliza muitas vezes os avistamentos a bordo, pelo que se justifica que os verdadeiros amantes dos cetáceos façam visitas aos vigias no sentido de encararem o desafio e as vantagens da observação do mar a partir da costa, seja por alguns minutos seja por algumas horas.
Percorrer a vereda até à Vigia baleeira com o pesado equipamento (binóculo e tripé) às costas – muito tempo depois dos homens que procuravam as baleias num sentido oposto ao nosso, mas igualmente por necessidade de sobrevivência – encheu-me de um sentimento de esperança e sentido de dever a cumprir pela importância do trabalho do vigia na redução da pegada ecológica associada à atividade marítimo-turística. A certo altura, a nossa rede de “eco-vigias sem teto” também foi utilizada, já que o vigia posicionado a norte, tendo apenas golfinhos-riscados em vista, pediu que o vigia a sul garantisse um avistamento mais consistente para a viagem. Normalmente, os golfinhos-riscados são animais difíceis de observar devido ao comportamento evasivo. Prontamente, e seguindo as indicações da equipa de vigias, o skipperrumou diretamente do porto para uma área ao largo do Paul do Mar, onde vários cachalotes maravilharam os clientes e a tripulação.
Hoje, as Vigias estão esquecidas e a maioria ou foi alvo da destruição e da incúria ou estão em terrenos particulares. Uma delas ficou em área militar, interdita, pertencente ao Regimento de Guarnição nº3, no Pico da Cruz, concelho do Funchal. A excepção ainda é a do Porto do Moniz, que a câmara municipal se prepara para reabilitar, depois de aberta e sinalizada a vereda que lhe dá acesso como percurso com interesse histórico. Por certo, aproveito para dizer que se justifica, de todo, a classificação do Traiól e Vigia do Porto do Moniz como Património (conjunto) Industrial de Interesse Regional. Tal iniciativa seria uma grande mais valia para o concelho e uma oportunidade para uma nova geração de vigias do Atlântico trabalhar e ensinar em melhores condições.
No contexto da gravíssima crise de saúde pública que todos vivemos o dever de todos é continuar em casa, mas a trabalhar com os meios à disposição de cada um em prol de um futuro responsável e global. Não podemos baixar os braços numa terra tão dependente do exterior como a ilha da Madeira. Nós temos esperança e contamos com a colaboração de todos, do arquipélago e, claro, de fora dele!
[divider type=”thick”]Agradecimentos
A elaboração da primeira parte deste texto deve-se à generosidade do Sr. Avelino, gerente do restaurante Cachalote que esteve disponível, desde a primeira hora, para colaborar com o autor desta crónica.
Os dados aqui sucintamente apresentados sobre as origens da baleeação no arquipélago da Madeira foram essencialmente extraídos dos conteúdos da exposição entitulada da “Terra ao Mar” pensada pelo Sr. Avelino, mas descrita e concebida por Luís Freitas, biólogo responsável pela Unidade de Ciência do Museu da Baleia e Ricardo Carvalho, patente no restaurante Cachalote.
A exposição é ilustrada por fotografias cedidas por Jacques Soulaire ao Museu da Baleia da Madeira e por fotografias de particulares da atividade e dos familiares que foram baleeiros cedidas ao restaurante.
Segue a minha palavra de apreço para o Tony Canha e para o Pedro Gonzalez (front office da empresa Madeira Wild Blue) pela oportunidade e por acreditarem ser possível.
Expresso aos meus camaradas de ofício Valério Abrunhosa, José Garanito e Gonçalo Fernandes, igualmente, o meu sincero agradecimento. Sem vocês estas linhas e alinhamento fotográfico não teriam sido possíveis.