Apesar de muitas coisas terem parado por estes dias, a Primavera continua lá fora. Afonso Rocha encontrou o primeiro ninho com ovos de borrelho-de-coleira-interrompida do ano nas Salinas do Samouco, Estuário do Tejo.
Afonso Rocha é um dos responsáveis do Grupo de Anilhagem do Estuário do Tejo.
Esta semana encontrou o primeiro ninho com ovos de borrelho-de-coleira-interrompida (Charadrius alexandrinus) do ano, nas Salinas do Samouco, em Alcochete.
“Desde 2005 que sigo as populações nidificantes nas salinas do Samouco e este ninho corresponde à primeira postura para esta espécie que encontrei este ano”, contou à Wilder este investigador do Departamento de Biologia e do CESAM (Laboratório Associado Centro de Estudos do Ambiente e do Mar) da Universidade de Aveiro.
O borrelho-de-coleira-interrompida é uma pequena ave de patas pretas e acastanhada por cima e branca por baixo. Ao pescoço tem uma coleira preta que não é completa, daí o seu nome.
Esta espécie reproduz-se de meados de Março até Julho. As salinas, como as do Estuário do Tejo, são locais favoritos para nidificar. Isto porque “os habitats naturais – como as praias arenosas ao longo das margens do estuário – são cada vez menores e estão sujeitos a grande pressão humana”, explicou Afonso Rocha.
Os ninhos são feitos em cima de areia ou cascalho fino, com pouca vegetação.
Os borrelhos colocam, em média, três ovos. Cada ovo tem cerca de 31 milímetros de comprimento e 23 de largura. Mas é comum encontrar nos últimos ninhos do ano apenas dois ovos, o que “parece reflectir a falta de nutrientes armazenados pelas fêmeas no final do período reprodutor”.
No ninho que Afonso Rocha encontrou, a postura ainda não estava completa. “O primeiro ovo deve ter sido posto um a dois dias antes de ter observado e fotografado o ninho. A fêmea irá colocar o terceiro ovo mais tarde nesse dia ou no dia seguinte e a partir daí inicia a incubação contínua dos ovos.”
Mas o trabalho reprodutivo começou bem mais cedo.
“Nas primeiras semanas de Março, os machos começam a defender o seu território de outros machos e a atrair as fêmeas para pequenas depressões que escavam no solo”, descreve o investigador.
“Nidificam de forma isolada ou em colónias esparsas que nalguns casos podem ser mistas, e é comum criarem na proximidade de ninhos Pernilongo ou Chilreta (Sternula albifrons).”
Depois de formarem o casal, “copulam ao longo de vários dias numa das depressões escavadas pelo macho e onde a fêmea escolhe colocar os ovos.”
Com a colocação do último ovo, ambos os progenitores colaboram na incubação alternada dos ovos durante 26 dias. As fêmeas permanecem no ninho maioritariamente durante o dia e o macho à noite.
Após a eclosão dos ovos, os progenitores encaminham e acompanham as crias para os locais de alimentação, onde estas se alimentam sozinhas.
Nos 29 dias seguintes, ambos os progenitores ou apenas um, no caso de um ter desertado, colaboram na defesa das crias até estas já serem voadoras e se juntarem aos bandos de borrelhos que se concentram nas salinas antes da migração.
Em todo este processo, Afonso Rocha destaca uma “estratégia reprodutora curiosa”. “Se existirem mais machos, como acontece nas salinas do Samouco onde existe um enviesamento da população reprodutora, estes tendem a abandonar as crias com a fêmea para voltarem a copular com uma nova parceira”, disse o especialista.
Mas nem sempre é assim. “Noutras populações desta espécie, o enviesamento é contrário e são as fêmeas que abandonam as famílias.”
A maioria dos borrelhos-de-coleira-interrompida destas salinas chega de fora
Mas quem são estas aves que nidificam nas salinas do Estuário do Tejo?
Graças à marcação com anilhas de cor, os conservacionistas sabem hoje que a população nidificante de borrelhos-de-coleira-interrompida “é composta por 30% de aves residentes e 70% aves migradoras”.
Actualmente estão marcados com anilhas de cor quase 400 borrelhos reprodutores. Mas ainda há muito por descobrir, como por exemplo, onde é que estas aves migradoras passam o Inverno.
“Em 2018 iniciámos o seguimento desta espécie, recorrendo a geolocalizadores que foram fixados no dorso de 50 borrelhos nidificantes. Estes aparelhos de 0.7g (< 2% do peso da ave) recolhem a informação sobre a localização das aves ao longo do ano. Mas precisam de ser recuperados para que a informação seja descarregada e analisada.”
No ano passado, a equipa de ornitólogos de Afonso Rocha recuperou os primeiros aparelhos. “Espero recuperar mais alguns durante o presente período reprodutor e assim conhecer as áreas importantes para a espécie durante o período não reprodutor.”
Os ninhos destes borrelhos nas Salinas do Samouco vão ser monitorizados. “Até ao último ninho desaparecer em Julho realizam-se duas visitas semanais aos principais locais de nidificação, o que nos permite registar os novos ninhos e acompanhar a evolução dos ninhos anteriormente marcados.”
Os investigadores registam as coordenadas, o tamanho das posturas e, em alguns ninhos, são colocadas câmaras de fotoarmadilhagem.
“Isto permite-nos identificar os progenitores (através do código de anilhas coloridas), estudar o comportamento de incubação e detectar as causas do desaparecimento dos ovos.”
Este é um ano diferente, por causa da pandemia de Covid-19.
“Por causa do facto de muitas pessoas estarem confinadas em casa, é espectável uma redução na perturbação junto dos locais de nidificação que se localizam nos limites de malhas urbanas.”
Mas a redução da actividade humana nestas áreas ou na sua envolvência poderá permitir que algumas espécies, como a raposa ou a gralha, “tenham uma maior liberdade de movimentos e, desta forma, aumentarem a pressão predatória sobre as populações reprodutoras de borrelho-de-coleira-interrompida”, observou Afonso Rocha.
[divider type=”thick”]Saiba mais.
Onde ocorre o borrelho-de-coleira-interrompida em Portugal? Afonso Rocha responde.
Esta espécie pode ser observada durante todo o ano em Portugal.
Nidifica ao longo da costa continental portuguesa, sobretudo em zonas estuarinas – como o estuário do Tejo ou a Ria Formosa – e em praias arenosas como a costa de Aveiro e ainda em algumas ilhas dos arquipélagos da Madeira e dos Açores.
Embora comum, as populações que se reproduzem na costa atlântica europeia, e onde se inclui Portugal, encontram-se em acentuado declínio, devido sobretudo à perda de habitat, aumento da pressão humana e predação dos ovos.
Em alguns locais existem organizações que estão a monitorizar e a proteger os ninhos dos borrelhos, de forma a perpetuar as suas populações reprodutoras nesses locais.
[divider type=”thick”]Saiba mais aqui sobre o trabalho do Grupo de Anilhagem do Estuário do Tejo.