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Manuel Nunes. Foto: Câmara Municipal de Lousada

“Autarquias são cruciais para o plano nacional de restauro mas têm uma grande fragilidade”

17.06.2025

Lousada é um dos poucos municípios que quebrou a fórmula tradicional dos departamentos de Ambiente – dedicados à água, resíduos e saneamento básico – e adotou há 10 anos a conservação da natureza. O vereador com a pasta, Manuel Nunes, disse à Wilder o que foi preciso fazer e o que mudou, numa entrevista à margem das XVII Jornadas de Ambiente do município, a 13 de Junho e este ano dedicadas ao restauro da natureza.

Com 48.000 habitantes, o município de Lousada, no distrito do Porto, é muito humanizado. Apesar de “haver gente por todo o lado”, nas palavras de Manuel Nunes – vereador com o pelouro do Ambiente, Natureza e Clima -, ainda há bolsas de biodiversidade importantes. Na última década, a autarquia tem comprado terrenos para a natureza, entre eles a Mata de Vilar (com 14 hectares), criou uma rede municipal de micro-reservas e a Paisagem Protegida Local do Sousa Superior e pôs no terreno projetos para restauro de rios, criação de charcos, plantação de árvores e combate às espécies exóticas invasoras. Na verdade, diz Manuel Nunes, as autarquias têm um papel crucial na concretização do Plano Nacional de Restauro da Natureza, que Portugal terá de apresentar até Setembro de 2023.

WILDER: Portugal está a elaborar o seu plano nacional de restauro da natureza, com metas a cumprir até 2030. Qual considera ser o papel das autarquias?

Manuel Nunes numa plantação de árvores. Foto: Câmara Municipal de Lousada

Manuel Nunes: Eu acho que é absolutamente crucial e que tem de haver um envolvimento directo dos municípios. Se os municípios não se envolverem não vai ser através do Estado central ou dos seus organismos que vamos conseguir cumprir as metas de restauro da natureza.

W: E como poderá isso ser feito?

Manuel Nunes: Da mesma forma como nos impuseram, depois de 2017, a obrigatoriedade de termos um plano de gestão de florestas atualizado, se não, não recebíamos as transferências do Estado. Ou então por planos que são criados ao nível das Comunidades Intermunicipais ou ao nível dos municípios para áreas de intervenção que serão identificadas. Isto vai ter que acontecer. De outro modo, o plano de restauro vai ser restrito apenas a áreas protegidas. E isso é um problema. Porque as áreas protegidas já têm problemas que cheguem. Temos um país a degradar-se, com muita pressão humana, que precisa ser recuperado, para as pessoas e para o ambiente, mas muitas vezes fora das áreas protegidas. Aliás, mais provavelmente, o envolvimento dos municípios vai acontecer porque têm vontade de ter as pessoas da comunidade consigo. Se eu vejo o vizinho a fazer bem eu também quero o que o vizinho tem. E as pessoas são as primeiras a pressionar os seus autarcas. Mas é preciso que o Estado central lhes dê uma oportunidade e faça essa interacção junto dos municípios. Se o fizer e conseguir encontrar alguma forma de financiamento, isso vai acontecer naturalmente. Do que eu conheço, os vereadores de Ambiente evoluíram muito no seu pensamento.

W: Ainda há muitos municípios cujo pelouro do Ambiente pouco se dedica à conservação da natureza.

Manuel Nunes: Isso é um problema. O ambiente é um eufemismo para resíduos, água e saneamento. Quando muito inclui-se a questão dos parques e jardins, os chamados espaços verdes. É isto que os municípios estão talhados para fazer. A conservação da natureza é um factor disruptivo, ninguém sabe. O pelouro que eu tenho não é Ambiente; é Ambiente, Conservação da Natureza e Clima. Mas quando começámos, houve todo um processo de mobilização dos próprios serviços para estas dinâmicas. Foi preciso envolvê-los e dizer venham ver como é que se faz. “Este sábado de manhã venham todos, vamos fazer uma plantação só para os serviços. Vamos ver como é que corre. E vão também algumas pessoas de fora, fazemos uma festa”. Os próprios serviços começam a perceber que há a possibilidade de abrir espaço para outras coisas. Claro que isto obriga a diversificar recursos humanos. Quando cheguei à câmara não tinha recursos humanos para esta área, só tinha para água, saneamento e para resíduos. Tive que ir buscar recursos humanos. Essa é a grande fragilidade dos municípios, não têm os recursos humanos focados nesta área. Aqui em Lousada houve uma conjugação de factores, primeiro um vereador que decidiu enveredar por este caminho e depois um presidente que acreditou na “loucura”.

Restauro de um troço de rio em Lousada. Foto: Câmara Municipal de Lousada

W: Mas para começar é preciso conhecimento, dados para suportar as iniciativas de restauro ou de conservação.

Manuel Nunes: Sim, a Ciência é um aspecto muito importante. Quando começámos, validámos tudo cientificamente, os dados todos. Isso fez com que as pessoas acreditassem mais facilmente. A Ciência ajudou a provar que estávamos no caminho certo. Por exemplo, em Lousada temos 7.400 árvores de grande porte, estão todas inventariadas. Para conseguir um regulamento para a salvaguarda do nosso arvoredo, foi crucial chegar ao executivo com um dossier que mostrou, cientificamente, quanto valem aquelas árvores em termos de carbono fixado já no solo e em termos de carbono a sequestrar no futuro. Somos, provavelmente, um dos poucos municípios do país onde o regulamento municipal protege uma dezena de espécies. É ilegal abatê-las, podá-las sem autorização. Nunca teria aprovado um regulamento municipal tão rigoroso se não tivesse essa validação científica prévia.

W: Então são necessárias parcerias locais com instituições científicas…

Manuel Nunes: Quando começámos, contactámos a Universidade de Aveiro que nos ajudou a fazermos a base científica sobre a biodiversidade do nosso concelho. Mas a partir daí, fomos buscar os técnicos de que precisávamos. Hoje, fazemos tudo com os serviços, ainda que a universidade colabore em certos momentos. Uma das chaves do sucesso é termos conhecimento científico, termos os técnicos do município a fazerem esse trabalho de investigação e de conhecimento. E depois termos a comunidade local a acreditar nesse trabalho por causa das pessoas que estão todos os dias no terreno. Se tiver uma coruja para ir salvar, não chamo o Sepna (Serviço de Protecção da Natureza da GNR); vai o Luís Guilherme que é o nosso biólogo e que está disponível a qualquer hora do dia e da noite. Até eu vou, já fui. Esta semana ligou-me um senhor a dizer que estava uma cobra dentro de casa de uma senhora que não sabia o que fazer. E eu disse-lhe, já aí vai o Luís, vamos lá buscar o bicho. É assim que as coisas funcionam. Há 10 anos atrás, não. A primeira vez que aconteceu uma coisa destas foi uma senhora à câmara com uma cobra dentro de um saco, não sabia o que lhe havia de fazer. O conhecimento científico da realidade local é fundamental. Tudo o que fazemos, desde as publicações até à educação ambiental, é baseado na nossa realidade. Os nossos miúdos não sabem nada sobre pandas mas sabem tudo sobre Chioglossas (salamandras-lusitânicas) que vivem num ribeiro ao lado da escola. Ou seja, o segredo do sucesso são muitos pequenos segredos conjugados numa teia. É uma dinâmica muito própria.

Charco criado no município. Foto: Câmara Municipal de Lousada

W: E pode ser replicada noutros municípios?

Manuel Nunes: Claro. Aliás, o que eu acho muito interessante no nosso trabalho é a replicabilidade de quase tudo, não tem nada de especialmente original. A originalidade reside apenas no facto de ser feito a uma escala municipal, concertada e de forma intrínseca já aos próprios serviços municipais. Já temos sido visitados por vereadores, técnicos superiores, chefes de divisão, directores de departamento de muitos municípios das ilhas e do país todo; querem perceber como é que se faz. Vêm ver e levam uma boa ideia que é replicável lá.

W: E qual tem sido a reacção da comunidade local?

Manuel Nunes: As pessoas interessam-se pelas terras onde vivem. O grande problema é que, muitas vezes, não lhes perguntamos o que é que elas gostariam que esses espaços fossem e de que forma é que elas gostariam de participar. Aqui, as pessoas lembram-se de como isto era e gostavam que voltasse a ser assim, estando disponíveis para fazer isso acontecer. Quando se dá oportunidade, as pessoas envolvem-se, primeiro com alguma curiosidade mas depois com um sentido de missão. E vêm uma vez, vêm duas e depois já trazem mais alguém e daqui a pouco, uma iniciativa muito simples como plantar árvores, não é um capricho de três ou quatro “treehuggers”, é um desígnio de quase todos. Não tenho 14.000 pessoas a plantar árvores porque sim, acontece porque há um acreditar no que estão a fazer. Nós não vamos plantar árvores e depois nunca mais lá pomos os pés. Plantamos as árvores e monitorizamos; as que morrem são plantadas novamente. E os proprietários que se envolvem e que cedem os terrenos para muitas dessas acções são os primeiros a dizer aos vizinhos e aos outros que isto vale a pena, é bom, participem. E depois não tenho um, tenho dez, 20, etc.

W: E como se começa esse trabalho de conquista das populações para a causa da conservação da natureza à escala local?

Manuel Nunes: Começa pelo exemplo. Quando comecei com este processo, não me dirigi à comunidade toda mas sim a pessoas-chave. Essas pessoas-chave são importantes para depois envolverem um conjunto de outras pessoas. É um processo de bola de neve. Por exemplo, desafio os dirigentes de um grupo de teatro amador a vir plantar árvores no próximo sábado. Lembro que vai ser uma festa, oferecemos t-shirts, toda a gente dá um lanche, toda a gente adora. No final, até acham que plantar árvores é fixe. E no próximo fim-de-semana vêm eles e o outro grupo amador que é rival e que também quer vir porque o outro também veio. E depois há um grupo de folclore que ouviu falar e também quer fazer parte. Porque naquele dia a plantação vai acontecer na sua freguesia. Isto para dizer o quê? Todos os municípios, sejam grandes ou pequenos, têm estas micro-realidades. E são essas micro-realidades, a pequenas escalas, o ponto de partida para envolver as pessoas. O envolvimento não passa por pôr nas redes sociais um cartaz a dizer “Vamos plantar árvores, venham”. Claro que vêm alguns, mas são pessoas que já estão sensibilizadas. Precisamos envolver os que nunca foram envolvidos. E isso só se consegue por uma aproximação muito directa. Posso-lhe dizer que passei o primeiro ano de todos os projectos ao telefone, a reunir, a falar, a ir a todo o lado e a estar com pessoas.

Restauro de um troço de rio. Foto: Câmara Municipal de Lousada

W: Considera que deveria haver mais apoio aos autarcas para trabalharem mais a conservação da natureza, especialmente no âmbito de um plano nacional de restauro da natureza?

Manuel Nunes: Deveria haver uma escola de autarcas para a conservação da natureza, uma espécie de preparação para o exercício do cargo. Estamos tão preocupados com a guerra, com o Trump e as taxas mas esquecemo-nos do mais essencial. Se não tivermos uma casa onde viver essas coisas não interessam nada. Se conseguirmos que os autarcas se envolvam (no plano nacional de restauro da natureza) isto vai funcionar. Porque se há alguém que sabe fazer acontecer são os autarcas. São eles que estão no terreno, que conhecem as pessoas e os seus problemas. E fazem acontecer coisas muito boas. Agora de uma forma concertada, ao nível nacional, ainda não está a ser feito. Acho que a Associação Nacional de Municípios também tem esse papel, esse desafio constante aos autarcas. Sem isso vamos continuar a ter pelouros do Ambiente como um eufemismo para saneamento, resíduos e águas. Que são de extrema importância, sem elas as pessoas também não vivem. Mas quando chegamos a um ponto, como é o caso de Lousada, em que está tudo resolvido, o que falta fazer? É preciso pensarmos no resto.


Helena Geraldes

Sou jornalista de Natureza na revista Wilder. Escrevo sobre Ambiente e Biodiversidade desde 1998 e trabalhei nas redacções da revista Fórum Ambiente e do jornal PÚBLICO. Neste último estive 13 anos à frente do site de Ambiente deste diário, o Ecosfera. Em 2015 lancei a Wilder, com as minhas colegas jornalistas Inês Sequeira e Joana Bourgard, para dar voz a quem se dedica a proteger ou a estudar a natureza mas também às espécies raras, ameaçadas ou àquelas de que (quase) ninguém fala. Na verdade, isso é algo que quero fazer desde que ainda em criança vi um documentário de vida selvagem que passava aos domingos na televisão e que me fez decidir o rumo que queria seguir. Já lá vão uns anos, portanto. Desde então tenho-me dedicado a escrever sobre linces, morcegos, abutres, peixes mas também sobre conservacionistas e cidadãos apaixonados pela natureza, que querem fazer parte de uma comunidade. Trabalho todos os dias para que a Wilder seja esse lugar no mundo.

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