Na ilha de Madagáscar vivem 500 espécies de anfíbios. Mas um fungo pode pôr em risco populações inteiras, alertou um estudo publicado na revista “Scientific Reports” na semana passada. Gonçalo M. Rosa, herpetólogo da Sociedade Zoológica de Londres, fez parte da investigação e estuda há anos o impacto das doenças nas comunidades de anfíbios. Já esteve várias vezes na ilha (na fotografia acima está ao centro a recolher amostras no campo, com Franco Andreone e Angelica Crottini, outros co-autores do estudo). Quer voltar a Madagáscar este ano para descobrir que tipo de fungo é este.
Wilder: Por que é que este fungo é tão importante?
Gonçalo M. Rosa: Este fungo pode ser responsável pela maior perda de biodiversidade na história causada por uma doença. Nos últimos 30 anos, o quitrídio (que provoca a doença chamada quitridiomicose) está associado ao declínio de dezenas de populações. Em várias áreas tropicais do planeta, populações inteiras foram empurradas para a extinção. Ora isto tem um impacto enorme além da perda de biodiversidade. Os anfíbios têm um papel essencial no ecossistema, situando-se no meio da cadeia alimentar. Tanto servem de alimento para um elevado número de espécies, como eles próprios consomem uma enorme biomassa de invertebrados, alguns deles (potenciais) vectores de doenças que afectam a saúde pública.
Wilder: O que significa para a biodiversidade mundial o fungo ter chegado a Madagáscar?
Gonçalo M. Rosa: Madagáscar é uma ilha com uma diversidade única de espécies, cerca de 500, apesar de ainda só 300 estarem descritas. Este número por si só já é impressionante, quando comparado com a realidade europeia. Por exemplo, Portugal tem cerca de 20 espécies e é considerado um dos hotspots de biodiversidade anfíbia da Europa. Mas o que torna Madagáscar tão especial são os seus endemismos, ou seja, as espécies que lá habitam não são encontradas em mais lugar nenhum do mundo. É esta biodiversidade única que pode estar em risco ao adicionarmos uma linhagem virulenta de quitrídio às ameaças ferozes já existentes, como a destruição dos seus habitats.
Wilder: E como é que o fungo chegou a Madagáscar?
Gonçalo M. Rosa: Não sabemos ainda se o fungo chegou a Madagáscar ou se sempre esteve lá e nós nunca o tínhamos detectado. Essa é a primeira questão que se coloca agora e que estamos a tentar desvendar. São dois cenários que podem ter impactos bem diferentes para as populações de anfíbios de Madagáscar. O primeiro registo que existe é de 2010, quando o fungo foi detectado no maciço Makay. Ora esta é uma zona muito remota e a descoberta foi feita na primeira expedição científica àquela área. Isto sugere uma probabilidade mais baixa de introdução deste fungo e a existência de uma linhagem endémica. As prevalências do fungo naquela zona sempre foram muito baixas e nunca se observaram mortalidades. O que significa que o fungo poderá estar presente deste “sempre”, co-evoluindo com as populações de anfíbios que resistem à sua presença. Por outro lado, temos prevalências bem mais elevadas do fungo no Parque de Ranomafana, um dos mais visitados do país, tanto por turistas como por investigadores. A detecção nesta área poderia facilmente ser explicada com uma recente introdução do fungo. Ainda não sabemos nada sobre a susceptibilidade das espécies de Madagáscar a este fungo.
W: Na ilha ainda não há registo de animais mortos pelo fungo, pois não?
Gonçalo M. Rosa: Não. E há várias hipóteses que podem ajudar a explicar isto. No caso de estarmos perante uma linhagem do fungo endémica e pouco virulenta, pode de facto dar-se o caso de as várias espécies co-existirem tranquilamente com este parasita, sem ocorrência de mortalidade. Por outro lado estamos a falar de um país mais de seis vezes maior que Portugal, mas com cerca de 500 espécies de anfíbios, onde as populações não são regularmente monitorizadas. Se ocorrer um episódio de mortalidade, é fácil que passe despercebido, até porque os cadáveres numa floresta tropical também se degradam muito depressa.
W: Então quais as principais perguntas que os cientistas querem ver respondidas agora?
Gonçalo M. Rosa: Qual a linhagem, ou linhagens, de quitrídio presente em Madagáscar; como é que lá chegou e quão susceptíveis são as espécies à linhagem presente. Só este conhecimento permitirá delinear novas estratégias em termos de conservação e novas questões.
W: E que estratégias de conservação poderão ser essas?
Gonçalo M. Rosa: Apostar na divulgação do problema, desde a população à classe política, é o melhor que se pode fazer para prevenir que o fungo se espalhe. Esta preocupação estende-se aos turistas e investigadores que visitam o país, podendo trazer consigo esporos do fungo nos pedaços de lama agarrados às botas.
Entretanto estudam-se formas de mitigar o impacto do fungo, passando pela manipulação de bactérias probióticas com propriedades anti-fúngicas ou pela manipulação de organismos aquáticos que predam este fungo.
W: E a reprodução em cativeiro pode ajudar?
Gonçalo M. Rosa: As chamadas captive insurance colonies podem ser uma resposta para evitar a extinção completa de certa espécie, como aconteceu na América Central. Mas a reprodução em cativeiro ainda está a dar os primeiros passos. O conhecimento sobre biologia, ecologia e necessidades para a reprodução de espécies de Madagáscar em cativeiro é muito reduzido, estando restrito a poucas espécies que são mais comuns no comércio de espécies exóticas. Sobre as restantes espécies começa-se agora a investigar e perceber as suas necessidades, de modo a poder dar-se uma resposta de sucesso em caso de emergência.
W: Mas há, ou não, cura para a doença?
Gonçalo M. Rosa: Existem vários protocolos que se têm mostrado eficazes como tratamento da quitridiomicose, desde banhos repetidos em solução anti-fúngica e antibióticos, a tratamentos com subida de temperatura. Todos eles apresentam vantagens e inconvenientes, com efeitos secundários demonstrados. Mas estamos a falar de tratamentos aplicados em animais de cativeiro, onde todas as variáveis podem ser controladas. O mesmo já se torna complexo de aplicar no campo.
W: Qual é a situação do fungo em Portugal?
Gonçalo M. Rosa: O fungo está associado ao declínio das populações de sapo-parteiro (Alytes obstetricans) nas zonas altas da Serra da Estrela. Tenho dados meus ainda não publicados que indicam que o fungo está presente em muitas outras áreas, embora o impacto que tem sobre as espécies e populações seja ainda desconhecido, em grande parte por não haver monitorizações regulares a essas populações.
W: Como podem os cidadãos ajudar?
Gonçalo M. Rosa: Uma série de doenças têm estado relacionadas com episódios de mortalidade massiva e declínios em populações de anfíbios em quase todo o mundo. A quitridiomicose é apenas uma delas. Evidências sugerem que estas doenças podem ter sido (ou estão a ser) espalhadas por nós, humanos, ou os agentes patogénicos podem tornar-se mais virulentos quando combinados com outros factores ambientais. As nossas escolhas no dia-a-dia têm impacto no ambiente. Assim de forma directa, ao não termos cuidados de higiene com o calçado (por exemplo) ao dar um passeio no campo, na floresta ou na montanha, podemos potenciar a dispersão ou introdução de novos agentes infeciosos. Indirectamente, o que pomos no prato, os sacos de plástico que usamos nas compras do supermercado e o uso que fazemos de recursos naturais, por exemplo, terá o seu impacto na emergência de novas e mais virulentas formas de doenças.
[divider type=”thin”]Sobre o fungo
O fungo foi registado, pela primeira vez, na década de 90. De então para cá já foi detectado em mais de 500 espécies de anfíbios em todo o mundo. Destas, pelo menos 200 já sofreram um declínio por causa da infecção.
Hoje, o fungo está presente em quase todos os continentes. Até agora existiam duas regiões consideradas livres: Papuásia-Nova Guiné e Madagáscar.