Conservacionistas e voluntários estão a recuperar a vida selvagem das Berlengas, ao largo de Peniche. Neste arquipélago vivem plantas únicas no mundo, nas suas encostas nidificam aves marinhas ameaçadas e o ecossistema marinho é um dos mais ricos das águas portuguesas. A Wilder visitou as Berlengas para saber o que está a ser feito.
“Está quietinha que até vais ficar mais gira com a mochila”, diz Pedro Geraldes à gaivota-de-patas-amarelas prestes a receber um pequeno transmissor GPS cinzento no dorso. Este biólogo está junto a uma pequena mesa montada perto do farol, em mais um dia de trabalho do projeto LIFE Berlengas (2014-2018), coordenado pela Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves (Spea), associação da qual faz parte.
A manhã está carregada de nuvens e o som das gaivotas faz lembrar gargalhadas. Há já cerca de dois anos que uma equipa está a conservar e a monitorizar a vida selvagem das Berlengas, a construir ninhos para aves, a arrancar plantas exóticas, a abrir trilhos.
“A monitorização de aves marinhas através de aparelhos eletrónicos é uma das ações que temos em curso”, adianta.
Desta vez foi capturada uma gaivota-de-patas-amarelas. “Sabe-se pouco acerca da utilização que esta espécie faz das lixeiras da faixa costeira de Leiria e Lisboa e junto às embarcações e portos de pesca. Por isso estes dispositivos podem ser uma ajuda”, explica Pedro Rodrigues, também biólogo da Spea.
Nos últimos dois dias, esta foi a primeira ave adulta que Geraldes e Rodrigues conseguiram capturar. Apesar de terem sido colocadas duas galhetas de plástico, a fitar o Forte de São João Baptista, a estratégia não alcançou o resultado pretendido. “Só apanhámos duas gaivotas juvenis na armadilha de laço, mas não valia a pena marcá-las e colocar-lhes o dispositivo de seguimento porque, enquanto juvenis, a sua taxa de mortalidade é maior”, justifica Rodrigues enquanto trabalha.
Os dois biólogos estão de volta da pequena mesa, concentrados numa operação delicada. Pedro Rodrigues, de agulha e fio dental, como linha de costura, na mão; Pedro Geraldes, a segurar cuidadosamente a cabeça da gaivota – “coberta para evitar levar uma bicada” – e as patas – “agarradas e esticadas para que a ave não se magoe ao tentar fugir”.
De acordo com Rodrigues, os dispositivos eletrónicos que estão a ser colocados permitirão termos um conhecimento maior, mais detalhado e rigoroso acerca do comportamento das aves que aqui nidificam.
“Estes transmissores têm um painel solar que lhes fornece a bateria e não são apenas um GPS, que nos permite saber a localização da ave, mas também um sistema que funciona como um telemóvel, enviando mensagens desde que a ave esteja numa área com cobertura de rede de telemóvel. A grande vantagem é que não é necessário voltar a capturá-la para obtermos a informação que pretendemos”, salienta.
Porém, Geraldes afirma que ainda há poucas aves anilhadas nas Berlengas. O projecto LIFE tem privilegiados outros trabalhos, como a recuperação e marcação dos trilhos. “O visitante não tem acesso a toda a ilha porque há sítios em que estão a ser desenvolvidas ações de conservação e monitorização”, esclarece.
Além de conhecer melhor as aves marinhas da região e da marcação dos trilhos, os conservacionistas têm apostado na remoção de chorão, espécie de planta exótica invasora que chegou a forrar quase a totalidade da Berlenga. “Estes tapetes contínuos têm sido uma preocupação desde o início do projeto”, conta-nos Geraldes.
Ao mesmo tempo que agarra num caule grosso de chorão, lembra o obstáculo que a espécie representa para a sobrevivência, germinação e crescimento de plantas nativas, algumas delas únicas no mundo, como a arméria-das-berlengas (Armeria berlengensis), com as suas flores em tons de rosa, a herniária-das-berlengas (Herniaria berlengiana), que consegue crescer em solos esqueléticos e em fissuras de rochas de granito, e a pulicária-das-berlengas (Pulicaria microcephala), que se embeleza com flores amarelas de Março a Julho.
“Já muito chorão se arrancou, enrolou e pôs a secar e os voluntários têm sido uma ótima ajuda”, assegura Geraldes. “Até agora já se realizaram várias campanhas, mas muitas mais se avizinham até 2018”, acrescenta.
A paisagem denuncia que a remoção de chorão é um processo de constantes avanços e recuos. “Felizmente, já vemos alguma vegetação nativa”, diz Pedro Geraldes ao apontar para uma angélica, ali mesmo, a crescer a olhos vistos.
Em cima do granito esbranquiçado e vermelho, a vida selvagem não pára. Ao lado do trilho de terra batida, entre o chorão e as espécies herbáceas e arbustivas em flor, circulam muitas formigas. De vez em quando, lagartixas passam a grande velocidade.
Ainda na zona mais alta da ilha, os trilhos estão bem definidos, mas o respeito pela natureza nem sempre. Vários são os visitantes que ignoram a sinalização em nome das “melhores vistas” para as outras ilhas do arquipélago: Estelas e Farilhões-Forcadas. À semelhança da Berlenga, também de encostas escarpadas e contornos irregulares.
Enquanto junto ao farol, as gaivotas se apoderam dos nossos sentidos – vemo-las e ouvimo-las por toda a parte -, mais abaixo, junto ao Carreiro do Mosteiro e Bairro dos Pescadores, a sua concentração não é tão acentuada.
Começamos a descer para a parte mais baixa da ilha. É lá que estão os ninhos das cagarras, nas falésias junto ao mar, numa zona de acesso restrito para não haver perturbação das aves e das suas crias. Um odor forte paira no ar. “Este ‘cheiro a galinheiro’ é dos dejetos das gaivotas, um caso sério devido à nitrificação dos solos”, explica o biólogo.
Caminhamos ao ritmo das palavras de Geraldes, que conta o que tem sido feito para monitorizar o sucesso reprodutor de outras duas espécies de aves marinhas: a galheta e a cagarra. “Na Berlenga, todos os ninhos de galhetas são de acessos difíceis”, por serem construídos nas prateleiras rochosas das falésias, junto ao mar. Pedro Geraldes apenas nos consegue levar até aos locais de nidificação das cagarras, numa área restrita a visitantes.
Mas, apesar de a ilha ser bastante rochosa, tem poucas cavidades onde as aves podem fazer os ninhos.
À chegada, encontramos logo os ninhos – pequenas cabanas de blocos graníticos. Várias estão identificadas com um número marcado na pedra a tinta branca, para que a sua evolução seja acompanhada pelos biólogos. Segundo Geraldes, há três tipos de ninhos nas Berlengas: as cavidades naturais, ninhos artificiais construídos pela Spea e aqueles feitos a meias com a natureza.
As últimas construções são as mais curiosas porque se tratam de buracos – naturalmente propícios para construção de um ninho -, que tiveram o auxílio humano para se tornarem menos vulneráveis a predadores. “Se as crias não estiverem bem protegidas tornam-se iscos fáceis para as gaivotas, que andam sempre por perto. Por exemplo, este buraco já estava cá e nós colocámos estas três pedras à frente para a cria ficar menos exposta ”.
Entretanto, surge a oportunidade de ver a cria de cagarra cujo nascimento ocorreu no passado dia 19 de julho e que está a ser acompanhada 24h, via webcam. Por pouco tempo, Pedro Geraldes retira-a cautelosamente do ninho e, despenteada, gordinha e de olhos semicerrados, é apresentada à Wilder.
O cuidado que esta ave juvenil requer faz-nos pensar na estima que estes ecossistemas necessitam. Até 2018, o LIFE Berlengas espera concretizar as ações agendadas, no sentido de preservar os habitats e as espécies endémicas deste monumento natural do atlântico continental.
Este projeto está a ser coordenado pela Spea, em parceria com o Instituto da Conservação da Natureza e Florestas (ICNF), a Câmara Municipal de Peniche e a Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e tem como observador externo a Escola Superior de Turismo e Tecnologia do Mar, do Instituto Politécnico de Leiria.
[divider type=”thick”]Agora é a sua vez.
Saiba quais as seis espécies a procurar numa visita às Berlengas.
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Este texto foi editado por Helena Geraldes.