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Ondas de calor estão a tornar os girinos “vegetarianos”

02.11.2016

O menu dos girinos nos charcos temporários de Portugal costuma ser variado, com larvas de mosquitos, efémeras, plantas aquáticas e microalgas. Agora, cientistas portugueses e suecos descobriram que, em alturas de demasiado calor, os girinos deixam os insectos de lado e tornam-se “vegetarianos”.

 

Este ano, Portugal continental já viveu quatro ondas de calor (ou seja, durante mais de cinco dias consecutivos, a temperatura foi superior em 5°C à média para a altura do ano). Duas em Julho, uma em Agosto e uma em Setembro, segundo os boletins climatológicos do Instituto Português do Mar e da Atmosfera (Ipma).

Bruno Carreira estuda charcos temporários e quis saber qual o impacto das ondas de calor nos girinos de três espécies: a rã-de-focinho-pontiagudo, a rela e a rela-meridional. Este investigador do cE3c – Centro de Ecologia, Evolução e Alterações Ambientais (Universidade de Lisboa), é o primeiro autor de um artigo publicado na edição de Novembro da revista Ecology.

“Na experiência que fizemos em laboratório, os girinos tinham à escolha insectos e vegetação aquática como alimento”, explicou hoje à Wilder. Ao mesmo tempo, os girinos foram expostos a ondas de calor simuladas e com durações diferentes. “Concluímos que, com temperaturas mais elevadas, os girinos das três espécies assimilaram mais matéria vegetal”, acrescentou.

 

Rela ou rã-arborícola-europeia adulta (Hyla arborea). Foto: Germán Orizaola
Rela ou rã-arborícola-europeia adulta (Hyla arborea). Foto: Germán Orizaola

 

A investigação do cE3c e da Unidade de Ecologia Animal da Universidade sueca de Uppsala foi a primeira a olhar para vertebrados e a estudar a sua assimilação de dietas mais ou menos ricas em proteínas, em função da temperatura. “Os resultados sugerem que as alterações climáticas podem ter impactos até agora desconhecidos na dinâmica dos ecossistemas”, escreve o cE3c em comunicado.

“Para sabermos se as temperaturas influenciam as preferências alimentares de espécies omnívoras – que se alimentam de animais e de plantas – nos charcos escolhemos os girinos, que são os mais comuns, e três espécies que vivem em ambientes térmicos diferentes”, explicou Bruno Carreira. Cada uma está adaptada a temperaturas mais baixas (como a de focinho-pontiagudo), médias (rela) e mais elevadas (rela meridional). Todas mudaram a sua dieta perante ondas de calor.

 

Rã-de-focinho-pontiagudo adulta (Discoglossus galganoi). Foto: Maria Alho
Rã-de-focinho-pontiagudo adulta (Discoglossus galganoi). Foto: Maria Alho

 

E por que razão o fazem? Bruno Carreira disse que “o mais provável é haver realmente uma alteração nas preferências alimentares”, mas também pode ser um mecanismo passivo destes animais de sangue frio, para tirarem maiores benefícios energéticos dos alimentos. “Os vegetais dão uma energia mais baixa do que as proteínas mas a sua digestão é muito mais fácil. É muito mais rentável uma fonte que dá energia mais rapidamente”, explicou.

 

Impactos do “vegetarianismo” dos girinos

 

A vida de um charco temporário dura cerca de oito meses. É no final de Outubro e início de Novembro que caem as primeiras chuvas e o charco se começa a formar. O seu auge acontece em Março e Abril. Nesta altura, a vegetação aquática está completamente desenvolvida e a água está repleta de minúsculos ovos de anfíbios, à espera do momento certo para eclodirem e metamorfosear-se até à fase adulta. E isso tem de acontecer até Junho, antes de o charco secar completamente. As espécies têm estes meses para completarem o ciclo de vida. O objectivo das plantas é dar sementes para formar um banco de sementes e os anfíbios e os insectos têm de completar a sua metamorfose.

Mas o frágil equilíbrio destes pequenos ecossistemas pode sofrer com as alterações climáticas.

“Ao tornar os animais omnívoros mais ‘vegetarianos’, o aquecimento global e as ondas de calor encurtam o comprimento das cadeias alimentares e ameaçam a estabilidade dos ecossistemas de água doce”, comentou Rui Rebelo, líder da equipa e investigador do cE3c.

As ondas de calor podem aumentar a temperatura da água nos charcos e encurtar a duração da vida de um charco temporário, por causa da evaporação. Mas a relação entre os animais que lá vivem também pode ser profundamente afectada. “A relação entre espécies que conhecemos pode ser alterada de forma generalizada”, disse Bruno Carreira. “Os organismos omnívoros interagem com muitos níveis tróficos, são flexíveis. Podem ajudar a atenuar os impactos de alguma alteração no charco. Mas com esta especialização no vegetal, deixam de ter essa posição intermédia e de interagir com tantas espécies na cadeia trófica.”

Este investigador, a fazer um doutoramento em charcos temporários, alerta que a alteração nas dietas por causa das ondas de calor pode acontecer a todos os animais de sangue frio, como os peixes de rio e do oceano, o que terá impactos nos ecossistemas a uma vasta escala.

Para o futuro, estes investigadores vão determinar se a maior assimilação da dieta vegetal a temperaturas mais elevadas se deve ao facto de os organismos alterarem directamente as suas preferências alimentares, ou se este é um efeito passivo da temperatura que afecta a digestão e assimilação de nutrientes.

Os charcos temporários são abrigo e local de reprodução e alimentação para inúmeras espécies, umas comuns, outras ameaçadas. Como eles próprios. “Eles são ecossistemas ameaçados, por exemplo por causa de algumas práticas agrícolas. Mas em Portugal temos bons projectos que estão a ter bons resultados. Além disso, a percepção pública sobre a sua importância começa a aumentar.”

 

[divider type=”thick”]Agora é a sua vez.

Ajude os charcos temporários de Portugal através do projecto Charcos com Vida. Pode participar na inventariação de charcos ou até ficar a saber como construir um. Até Dezembro, este projecto tem a decorrer uma campanha de crowdfunding para proteger estes habitats.

 

[divider type=”thick”]Saiba mais.

Descubra o que está a acontecer nos charcos temporários no Outono, desta vez com o tritão-de-ventre-laranja.

Helena Geraldes

Sou jornalista de Natureza na revista Wilder. Escrevo sobre Ambiente e Biodiversidade desde 1998 e trabalhei nas redacções da revista Fórum Ambiente e do jornal PÚBLICO. Neste último estive 13 anos à frente do site de Ambiente deste diário, o Ecosfera. Em 2015 lancei a Wilder, com as minhas colegas jornalistas Inês Sequeira e Joana Bourgard, para dar voz a quem se dedica a proteger ou a estudar a natureza mas também às espécies raras, ameaçadas ou àquelas de que (quase) ninguém fala. Na verdade, isso é algo que quero fazer desde que ainda em criança vi um documentário de vida selvagem que passava aos domingos na televisão e que me fez decidir o rumo que queria seguir. Já lá vão uns anos, portanto. Desde então tenho-me dedicado a escrever sobre linces, morcegos, abutres, peixes mas também sobre conservacionistas e cidadãos apaixonados pela natureza, que querem fazer parte de uma comunidade. Trabalho todos os dias para que a Wilder seja esse lugar no mundo.

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