Muitas terras agrícolas abandonadas, incluindo em Portugal, poderiam ser destinadas a estes projetos, que as tornariam mais resistentes ao fogo e resilientes face às alterações climáticas. A Wilder falou com o investigador Miguel Bastos Araújo e diz-lhe o que está em causa.
Estes quase 25% representam um total de 117 milhões de hectares do continente europeu com boas condições para retornarem à condição natural primitiva anterior à intervenção humana, permitindo que a gestão da natureza ficasse entregue a si própria, concluíram os autores de um novo estudo, publicado esta quinta-feira na revista científica Current Biology. As principais oportunidades para o rewilding situam-se na Escandinávia e na Escócia, mas também nalgumas terras altas da Península Ibérica.
Para determinar quais seriam os territórios disponíveis, foram identificadas três condições necessárias: uma extensão grande de território disponível, superior a 10.000 hectares, e um nível de impacto humano muito baixo.
“Existem muitas áreas na Europa que têm um baixo índice de impacto humano no território, tal como a presença de espécies animais chave, com potencialidade para serem renaturalizadas (‘rewilded’, no original em inglês)”, afirmou Miguel Bastos Araújo, primeiro autor e investigador da Universidade de Évora e do Museu Nacional de Ciências Naturais, em Madrid. “Também sublinhamos a necessidade de estratégias diferentes, dependendo das condições em cada região.”
Desde logo, o estudo faz uma distinção entre o rewilding ativo, quando se introduzem (ou reintroduzem) espécies selvagens num território, e o rewilding passivo, que aposta numa renaturalização sem a introdução de outros animais. Para que esta última estratégia seja bem sucedida, é necessária uma área bastante extensa – superior a 100.000 hectares – e a ocorrência de espécies chave de herbívoros e carnívoros em quantidades suficientes para reocuparem por si próprios esses locais.
Em Portugal, por exemplo, não existem áreas com extensão suficiente para o rewilding passivo, tal como há uma diversidade insuficiente de espécies chave de carnívoros para que isso possa suceder, indicou Miguel Bastos Araújo à Wilder. Existem todavia oportunidades para o rewilding ativo, algo que já está aliás a suceder em projetos no Vale do Côa, embora em extensões bastante menores de território do que aquelas que são apontadas como as ideais neste novo estudo – a partir de 10.000 hectares de terreno.
Veados, corços, cabras alpinas, bisontes, castores e renas, mas também coelhos e lebres, são alguns dos herbívoros identificados como espécies chave para o rewilding, em alternativa aos herbívoros domésticos introduzidos em grandes quantidades pelos humanos. Quanto aos carnívoros e omnívoros, que em vez dos caçadores têm o papel de predadores nesses ecossistemas, a lista inclui o lobo, o urso, o gato-bravo, o lince-ibérico e o lince-euroasiático, a lontra, o texugo e também o chacal – que em breve deverá chegar ao território português, afirma o cientista.
“Podemos comparar os herbívoros aos engenheiros dos ecossistemas, uma vez que pastam e moldam a vegetação, enquanto que os predadores são os arquitetos, criando paisagens do medo que os herbívoros evitam”, descreve Araújo.
Um exemplo de sucesso (e de resistência ao fogo)
Em Yellowstone, nos Estados Unidos, por exemplo, recorreu-se ao rewilding ativo. Em entrevista à Wilder, o investigador português lembrou o que sucedeu quando os lobos foram reintroduzidos nesta área protegida, na década de 1990, dando origem àquelas que fivaram conhecidas como as “paisagens do medo”. Os herbívoros, que existiam em grandes quantidades neste parque natural e impediam o desenvolvimento da vegetação, começaram a evitar algumas das áreas por medo deste predador e a concentrarem-se em zonas onde ficavam mais visíveis.
“Isso fez com que a herbivoria deixasse de ser tão uniforme e passasse a ser muito intensiva nalgumas zonas, criando pastagens, e se tornasse quase inexistentes noutras áreas. E esse mosaico tem uma consequência secundária, que proporciona paisagens muito resaliantes aos incêndios”, sublinhou o biogeógrafo, conhecido pelo trabalho de investigação que tem feito sobre as alterações climáticas. “Temos zonas de pastagem, temos zonas de bosque que nunca são muito grandes, são sempre bosquetes rodeados de zonas com menos árvores, e esse mosaico cria paisagens resilientes às alterações climáticas, em particular ao efeito dos incêndios.”
Rumo às metas europeias para a biodiversidade
O estudo agora publicado concluiu também que a aposta nas estratégias de rewilding sugeridas irá permitir que diversos países europeus, incluindo Portugal, Espanha, Reino Unido e França, alcancem as metas da Estratégia Europeia para a Biodiversidade 2030 quanto à conservação. Em causa está a necessidade de destinar 30% de cada território nacional à conservação da biodiversidade, até 2030, sendo que 10% terão de ser áreas estritamente devotadas a esse fim. Já outros países, devido à densidade populacional, terão de recorrer a outras medidas – como é o caso da Itália, Bélgica e Dinamarca.
“O recurso a estratégias de conservação que envolvam o restauro ecológico de áreas densamente povoadas poderia ajudar alguns países a alcançarem as metas de conservação”, sublinhou o investigador português, citado numa nota de imprensa do Museu Nacional de Ciências Naturais. “Os países poderiam reclamar terra para as transformarem em áreas de conservação ou estabelecer redes de habitats pequenos, protegidos. Paisagens tradicionais com usos diversos, como as áreas de carvalhos na Península Ibérica e vários sistemas extensivos agrícolas e florestais na Europa, poderiam ajudar se forem geridos de forma sustentável.”
Apesar de ser verdade que o cenário político na Europa se alterou nos últimos anos e que as condições são menos propícias a projetos de rewilding do que acontecia em 2019, quando este estudo científico se iniciou, Miguel Bastos Araújo acredita que é possível aplicar as suas conclusões. “Estamos a correr contra o tempo”, avisou. “As áreas que hoje parecem mais promissoras para o rewilding poderão ter desaparecido daqui a 50 anos, devido às alterações climáticas.”