Considerado em vias de extinção, já foi injustamente acusado de travar a construção de uma importante estrada em Trás-os-Montes. A Wilder falou com o especialista Ricardo Pita, que explica o que torna este pequeno mamífero especial.
1. É uma espécie prioritária para o projecto do Livro Vermelho
Há muitos meses que Ricardo Pita e outros investigadores e técnicos ligados ao projecto do Livro Vermelho dos Mamíferos de Portugal Continental andam no campo em busca de sinais da presença do rato-de-Cabrera (Microtus cabrerae), para descobrirem qual é a situação deste pequeno mamífero.
O rato-de-Cabrera é uma das espécies prioritárias para este projecto, que até ao final do próximo ano vai rever o risco de extinção e o estado de conservação de mais de 70 mamíferos.
Tímido e muito difícil de ver, é maior do que outras espécies do género Microtus e tem uma pelagem mais comprida, castanho-oliva no dorso e mais clara no ventre. Pesa entre 30 e 78 gramas.
Mas porque é prioritária? Foi o único roedor classificado com um estatuto de ameaça, neste caso Vulnerável, na última revisão do Livro Vermelho dos Vertebrados de Portugal (2005), lembra Ricardo Pita, investigador na Universidade de Évora, que nota que a espécie tem sofrido “crescentes pressões das actividades humanas sobre os seus habitats preferenciais”. E por isso, é “fundamental” reavaliar e actualizar o seu risco de extinção.
Por outro lado, é “Desconhecido” o estado de conservação do rato-de-Cabrera em Portugal, de avaliação periódica obrigatória no âmbito da legislação ambiental europeia.
2. As leis europeias conferem-lhe uma forte protecção
As próprias leis europeias – neste caso a Directiva Habitats e os anexos em que a espécie está listada (II e IV) – obrigam a que este roedor seja alvo de uma “protecção estrita ou rigorosa, o que neste caso poderá implicar a protecção física das suas colónias e habitats, incluindo fora da Rede Natura 2000“, explica Ricardo Pita.
Este grau de protecção justifica-se “pelas ameaças específicas que o rato de Cabrera enfrenta, não só relacionadas com a intensificação da agricultura e sobrepastoreio, mas também com as alterações climáticas, às quais a espécie parece ser também particularmente sensível”, acrescenta o investigador.
3. Pensou-se que tinha impedido a construção de uma estrada, mas afinal não
Foi em 2006 que aconteceu. Estava em projecto a construção de uma alternativa ao percurso sinuoso da EN218, entre Outeiro e Vimioso, em Trás-os-Montes, para facilitar o acesso dos habitantes a Bragança e à autoestrada A4. Mas o projecto nunca saiu do papel – travado, segundo notícias da altura, por uma colónia de ratos-de-Cabrera que urgia proteger.
Todavia, tudo indica que estes roedores não tiveram qualquer culpa no que aconteceu, noticiaram mais tarde o Diário de Notícias e o Jornal de Notícias (JN). O projecto nunca chegou a ser alvo de avaliação, excepto uma pequena variante entre Vimioso e Carção submetida a avaliação de impacte ambiental, processo que não foi para a frente por informação insuficiente.
Já sobre o rato-de-Cabrera, na altura da decisão, nada foi referido pela Comissão de Avaliação, garantiu ao JN o Ministério do Ambiente. “Segundo o Instituto de Conservação da Natureza e da Biodiversidade [actual Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas], não há registo de populações dessa espécie na zona de implantação do projecto, o que existe é uma listagem que referencia a possibilidade de a espécie existir”, citou o jornal.
Ricardo Pita confirma que “não foram identificadas colónias de rato de Cabrera na zona de implantação do projecto”, mas adianta que “a presença da espécie na região está de facto confirmada, embora corresponda ao limite norte da sua distribuição em Portugal”.
Certo é que apesar do esclarecimento, tornou-se “ainda mais difícil” cativar os portugueses e as populações locais para a conservação deste roedor – uma tarefa complicada “em comparação com o que acontece por exemplo com espécies de mamíferos carnívoros”, nota o investigador da Universidade de Évora. Sem o envolvimento e a compreensão dos habitantes locais, é impossível conservar este rato com sucesso, sublinha.
4. É um “engenheiro” dos ecossistemas
À semelhança de outros mamíferos do mesmo tamanho, o rato-de-Cabrera tem um “papel fundamental” no funcionamento dos ecossistemas, sublinha Ricardo Pita. Essa importância deve-se desde logo à sua sua posição nas cadeias alimentares, pois serve de alimento a várias aves de rapina e mamíferos carnívoros.
Mas também tem funções importantes na oxigenação e permeabilização dos solos e na dispersão de sementes, “motivo pelo qual poderá ser considerado como um ‘engenheiro’ dos ecossistemas”.
5. Só existe na Península Ibérica
É um dos dois roedores endémicos da Península Ibérica, ou seja, esta é a única região do mundo onde ocorre naturalmente. As populações de rato-de-Cabrera distribuem-se em quatro núcleos principais, dos quais o maior é chamado de núcleo Luso-Carpetano, explica o investigador.
Este núcleo inclui todas as populações portuguesas desde o sudoeste, centro e nordeste do país, até às populações do Sistema Central Ibérico em Espanha. Segundo o Livro Vermelho dos Vertebrados, em 2003 ocorria em Portugal nas regiões de Trás-os-Montes (Douro Internacional), Beira Interior, Ribatejo, Estremadura, Alto Alentejo e no Sudoeste Alentejano e Algarvio.
6. É provavelmente monogâmico
“É verdade que as evidências que existem sugerem que o rato de Cabrera terá um comportamento predominantemente monogâmico”, adianta Ricardo Pita. Os cientistas encontraram evidências de que quer a fêmea quer o macho prestam cuidados parentais às crias.
No entanto, ressalva, “também parece poder haver desvios a essa monogamia, em que por exemplo um macho pode acasalar com mais do que uma fêmea, e em que outras fêmeas não reprodutoras prestam também cuidados às crias”.
7. Tem uma metapopulação. (Mas o que é isso?)
Este mamífero herbívoro habita em áreas agrícolas e em sistemas agro-silvo-pastoris, descreve o investigador, lembrando que o rato-de-Cabrera está “normalmente restrito a pequenas parcelas de habitat com elevada humidade no solo, que suportam uma vegetação herbácea bem desenvolvida que se mantém verde durante grande parte do ano”.
O que acontece é que essas parcelas de habitats “podem estar mais ou menos isoladas umas das outras”, o que faz com que a ligação entre as diferentes populações locais “seja garantida pelos movimentos de dispersão dos indivíduos”. Uma determinada parcela, dependendo do seu tamanho e grau de isolamento, pode ser colonizada ou então a sua população extinguir-se.
“É esta dinâmica de colonizações e extinções locais que caracteriza uma metapopulação, e que determina que pode haver parcelas de habitat favorável que estão desocupadas num determinado momento, mas que podem vir a ser colonizadas mais tarde”, detalha o biólogo, que nota que é fundamental “manter a conectividade entre parcelas de habitat favorável para que a espécie possa persistir ao nível regional”.
8. Podemos saber onde vive pelas regurgitações das corujas das torres
Os investigadores estão já a terminar o trabalho de campo relativo ao rato-de-Cabrera. Ao longo de muitos meses, procuraram por vestígios deste roedor, em especial recolhendo e analisando regurgitações de coruja das torres em diferentes locais do país, para verificar se a espécie estava entre as suas presas.
As armadilhas de pêlo foram outro método usados, especialmente em locais onde não há corujas-das-torres. Ricardo Pita explica que “consistem em dispositivos iscados que retêm pêlos dos animais à sua passagem, permitindo a posterior identificação das espécies através de análise morfológica ou genética dos pêlos recolhidos”.
Tanto para este como para outros pequenos mamíferos, a equipa também realizou transectos em habitats favoráveis, observando com atenção enquanto andavam ao longo dos percursos. Só assim foi possível encontrar diversos indícios da presença do roedor: “Túneis marcados na vegetação, restos de erva cortada e dejectos, que estão normalmente dispostos em latrinas”, descreve Ricardo Pita. “Em casos de dúvidas, a identificação da espécie é sempre confirmada através da análise genética dos dejectos recolhidos.”
Para já, ainda é cedo para saber os resultados definitivos destes trabalhos. Mas poderá haver novidades até ao final do próximo ano, uma vez que há “alguns registos potenciais em locais onde a espécie não era conhecida anteriormente”. Ainda assim, acautela o investigador da Universidade de Évora, “é provável que pelo menos nalguns casos possa vir a ser necessário recorrer à confirmação genética”.
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