abutre em voo
Abutre-preto. Foto: Artemy Voikhansky/Wiki Commons

Confirmada primeira morte de um abutre por causa do diclofenac na Europa

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Um jovem abutre-preto nascido em 2020 na Catalunha, Espanha, foi a primeira vítima confirmada na Europa de intoxicação por diclofenac, medicamento de uso veterinário para gado, revelou o GREFA.

Já se sabia que os medicamentos que utilizam na sua formulação o diclofenac – usado como anti-inflamatório e analgésico em animais de gado – são fatais para aves necrófagas. O diclofenac pode persistir em concentrações letais numa carcaça até sete dias depois da morte do animal. Quando abutres, águias ou outros animais necrófagos se alimentam dessa carcaça, ingerem também o diclofenac.

O caso mais conhecido dos danos causados pelo diclofenac na vida selvagem é o da Índia, onde as populações de três espécies de abutres registaram reduções superiores a 97% depois de terem ingerido carcaças que tinham sido tratadas com diclofenac. Como resultado, este fármaco foi banido no subcontinente indiano em 2006. Desde então, os abutres indianos têm vindo a recuperar.

Mas na Europa ainda não havia casos confirmados. Até agora.

O trabalho que permitiu confirmar este caso de intoxicação por diclofenac foi publicado a 5 de Abril num artigo na revista científica Science of the Total Environment.

Tudo aconteceu a 24 de Setembro de 2020, quando foi encontrado morto no ninho um abutre-preto (Aegypius monachus) nascido nesse mesmo ano na colónia da Reserva Nacional de Caça de Boumort e que poucos dias antes tinha iniciado os primeiros voos. O emissor GPS que levava permitiu à equipa da GREFA (Grupo de Reabilitação da Fauna Autóctone e seu Habitat) responsável pelo seguimento desta colónia interpretar esta informação e localizar o cadáver deste abutre.

O jovem abutre-preto foi observado e fotografado dois dias antes da sua morte por técnicos da GREFA que estavam a monitorizar as crias desta espécie nascidas em 2020 em Boumort.

O abutre-preto intoxicado por diclofenac, fotografiado com vida dois dias antes de ter sido encontrado morto. Foto: GREFA

Aparentemente estava em bom estado de saúde e era vigiado de perto pelos seus progenitores que estavam pousados num pinheiro silvestre.

O cadáver deste abutre foi levado para o Centro de Fauna de Vallcalent, em Lleida. Ali foi feita a necropsia e foram recolhidas amostras para análise. Os exames que se seguiram confirmaram “sem dúvidas” que a morte deste abutre-preto foi causada pela intoxicação por diclofenac.

Este trabalho confirma pela primeira vez como um perigo real que os abutres na Europa podem morrer ao ingerir carne de gado tratado com diclofenac. Esta substância provoca insuficiência renal aguda que rapidamente leva à morte destas aves.

O GREFA recordou que as organizações conservacionistas espanholas e europeias “têm vindo a alertar há anos para o risco que o diclofenac representa para estas aves”.

Na sua opinião, o alarme está “mais do que justificado”, já que este fármaco anti-inflamatório, no seu uso veterinário, foi a causa de uma dramática diminuição das populações asiáticas de várias espécies de abutres no início deste século, numa escala sem precedentes.

“Agora já sabemos que é muito real o risco de morrerem outras aves necrófagas na Europa por esta causa. Inclusive podem já ter ocorrido casos que não foram detectados”, comentou Ernesto Álvarez, presidente da GREFA e um dos autores do artigo.

Os autores do artigo defendem medidas para impedir que os abutres se alimentem de cadáveres e restos de gado tratado com diclofenac. No caso destas medidas preventivas não serem concretizadas com todas as garantias, recomendam uma moratória ao uso veterinário de diclofenac e que se encontrem fármacos alternativos não tóxicos para estas aves.

A Fundação para a Conservação dos Abutres sublinha que este é o primeiro caso de envenenamento por diclofenac em Espanha e na Europa, além de ser também o primeiro caso registado para esta espécie de abutre.

Este é um “momento de viragem, uma vez que é a prova mais que provada que o diclofenac pode entrar na cadeia alimentar dos abutres na Europa e, por isso, deve ser proibido o seu uso comercial”, escreve em comunicado esta fundação que está a trazer de volta os abutres à Europa.

Em Portugal, os conservacionistas pedem há muito o fim do diclofenac. A 10 de Janeiro de 2019, dois Projectos de Lei para proibir esta substância, iniciativas do PAN e do PEV, foram rejeitados durante uma votação no Plenário da Assembleia da República, tendo os votos contra do PS, PSD e CDS-PP.

A Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves (Spea) disse, em comunicado, que “Portugal perdeu uma oportunidade de dar o exemplo em matéria de conservação da natureza e salvaguarda da saúde pública”. “Não se percebe como é que não é proibida uma substância que é perigosa e para a qual existem alternativas seguras” comentou, na altura, Joaquim Teodósio, coordenador do Departamento de Conservação Terrestre da Spea.

“Os abutres têm um papel importantíssimo no controlo de doenças nos nossos campos. Sem eles, corremos o risco de enfrentar graves problemas de saúde pública.”

O abutre-preto, a maior ave de rapina da Europa, é uma das espécies mais ameaçadas de Portugal, com estatuto de Criticamente Em Perigo de extinção.

Durante 40 anos não nasceram crias de abutre-preto no país, desde a década de 70.

Só no final de Julho de 2010 é que se registaram duas crias, ambas no Tejo Internacional, e desde então o regresso desta espécie Criticamente em Perigo tem sido acompanhado e incentivado por várias instituições.

Helena Geraldes

Sou jornalista de Natureza na revista Wilder. Escrevo sobre Ambiente e Biodiversidade desde 1998 e trabalhei nas redacções da revista Fórum Ambiente e do jornal PÚBLICO. Neste último estive 13 anos à frente do site de Ambiente deste diário, o Ecosfera. Em 2015 lancei a Wilder, com as minhas colegas jornalistas Inês Sequeira e Joana Bourgard, para dar voz a quem se dedica a proteger ou a estudar a natureza mas também às espécies raras, ameaçadas ou àquelas de que (quase) ninguém fala. Na verdade, isso é algo que quero fazer desde que ainda em criança vi um documentário de vida selvagem que passava aos domingos na televisão e que me fez decidir o rumo que queria seguir. Já lá vão uns anos, portanto. Desde então tenho-me dedicado a escrever sobre linces, morcegos, abutres, peixes mas também sobre conservacionistas e cidadãos apaixonados pela natureza, que querem fazer parte de uma comunidade. Trabalho todos os dias para que a Wilder seja esse lugar no mundo.

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