Câmaras e microfones no encalço do invasor

26.02.2025

O projeto que há 15 anos tenta controlar e erradicar a rã-de-unhas-africana, espécie exótica invasora no nosso país, é um caso raro de sucesso. Por isso, está a ser produzido um vídeo institucional que relata os esforços dos biólogos na luta pela proteção da biodiversidade nativa das nossas ribeiras.

 

“Xenopus!” ouve-se em alto e bom som. Todos correm em frenesim, uns com camareiros, outros com câmaras, para tentar apanhar a evasiva rã-de-unhas-africana, cientificamente conhecida como Xenopus laevis, ou apenas Xenopus, para os inimigos.

Foto: Pedro Armada

A água da ribeira chega até à cintura e a largura do troço, limitado por paredes de pedra, não ultrapassa os cinco metros. As plantas aquáticas cobrem a água e as margens e, de vez em quando, alguém quase tropeça numa rocha escondida.

A quantidade de mosquitos a zumbir ao ouvido, unida ao lixo acumulado na ribeira, não tornam este lugar no mais convidativo de Sintra. Ainda assim, tanto os biólogos como os produtores audiovisuais se concentram ao máximo para tentar apanhar, em rede e em câmara, o invasor.

O dia começou às 11h00 horas, quando Miguel Cortes Costa e Carolina Castro Almeida saíram de casa e encheram o carro com material de filmagem. Câmaras, tripés, gimbals, microfones, perches e luzes preenchiam o porta-bagagens. As galochas de peito, conhecidas como waders, foram nos bancos de trás. Juntos, formam a Lengalenga Filmes, uma produtora audiovisual de vídeos e documentários de ciência e natureza criada em 2022. Na viagem, falaram do âmbito do vídeo e discutiram o plano de filmagens para o dia.

Seguimos rumo a Sintra, onde a produtora combinou encontrar-se com uma equipa de biólogos às 12h00, junto às margens da Ribeira da Laje. O propósito: filmar a equipa num dia de trabalho de campo enquadrado no projeto de erradicação da rã-de-unhas-africana (Xenopus laevis), uma espécie de rã oriunda, como o nome sugere, do continente africano e invasora no nosso país. As filmagens do dia farão parte de um vídeo, pedido pela Câmara Municipal de Sintra sobre o projeto, produzido integralmente pela Lengalenga Filmes.

Foto: Pedro Armada

“O facto de o vídeo ter sido pedido agora, passa pelo sucesso que o projeto tem tido em erradicar esta espécie, algo raro quando se lida com espécies exóticas”, diz Carolina. “O vídeo é a melhor ferramenta para sensibilizar, educar e dar a entender às pessoas comuns que espécie é esta e como é que funciona este desequilíbrio de espécies invasoras num ambiente natural onde elas não pertencem”.

“Câmara, som, ação!”

Às 12h00, já lá estão quatro biólogos, encostados na traseira dos carros estacionados perto da ribeira. Os seus nomes: Mónica, Raquel, Carlota e Manuel (aos quais se iriam juntar Sara e Fernando, totalizando a equipa). Cheira a terra molhada. Tratadas as cortesias, põe-se mãos à obra.

Para a primeira cena do dia, a produtora quer planos de um biólogo a recolher amostras da água da ribeira. O eleito é Manuel Sampaio, estudante de doutoramento na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, a trabalhar com a Xenopus laevis.

É identificado o melhor local para as filmagens e posiciona-se o equipamento. São usadas duas câmaras, uma fixa dentro da ribeira e uma que segue a pé o movimento do biólogo e acompanha a recolha da água com uma seringa. A perche, para a captação de som, é segurada por Carolina junto à margem.

Foto: Pedro Armada

Nem tudo funciona à primeira e são precisos alguns takes até que tudo encaixe bem.

Assim que a produtora ficou satisfeita com o plano, seguimos para o próximo: atravessamos um açude na ribeira até um troço onde é necessário todos vestirem as waders, para proteger da água que dá pela cintura.

O método mais utilizado na captura da rã-de-unhas-africana é a pesca elétrica. Para isso, um cientista equipa um aparelho elétrico capaz de atordoar as rãs, descarregando eletricidade para a água, enquanto outros dois o acompanham com camaroeiros.

Não há rãs naquele troço, mas o facto de se estar a gravar um vídeo, exige que os biólogos simulem o ato da pesca. E assim se anda no meio da ribeira durante cerca de meia hora e o trabalho sério dá, por vezes, lugar a gargalhadas e brincadeiras que todos apreciam.

Foto: Pedro Armada

A rã-de-unhas-africana está incluída na Lista Nacional de Espécies Invasoras e, como as demais, deve ser alvo de um plano de controlo ou erradicação. Desde 2010 que o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) coordena este plano de erradicação, em colaboração com mais quatro entidades, o Centro de Ecologia, Evolução e Alterações Ambientais (CE3C) da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, o Município de Oeiras, o Município de Sintra e o Instituto Gulbenkian de Ciência.

“Em termos de abundância e de área de ocupação da espécie, os números têm vindo a diminuir”, conta Mónica Sousa, bióloga do ICNF, em entrevista à produtora. “Uma das razões pela qual acreditamos que vamos conseguir recuperar a biodiversidade, que é o nosso objetivo, é que nos troços onde já não capturamos a espécie, conseguimos ver um aumento exponencial de espécies nativas.”

O céu abre à medida que o dia avança e pelas 14h30 todos comeram algo a que chamaram de almoço, antes de se continuar o dia numa nova localização na ribeira. O caminho de carro é curto e termina junto a uma ponte de pedra que transpõe a Ribeira de Barcarena.

Fica no meio de uma aldeia. Poucas casas se avistam e não se vê ninguém a não ser um pastor que conduz um rebanho de cabras e um ou dois carros que passam esporadicamente. De vez em quando, alguém pára e maravilha-se a olhar para a Serra de Sintra, que se ergue verde e imponente.

Foto: Pedro Armada

De um lado da ponte, onde a água rasa está quase totalmente coberta por plantas, Raquel Neves e Sara Almeida, biólogas das câmaras municipais de Sintra e Oeiras, respetivamente, apresentam-se perante as câmaras para mais uma entrevista. “Nestas bacias hidrográficas dos municípios de Sintra e Oeiras temos espécies que são únicas no mundo. Espécies como a boga-portuguesa e o escalo-do-sul são endemismos e estão em risco de extinção, é importante protegê-las”, diz Raquel.

Já Sara, toca num outro tópico crucial: “Só conseguimos proteger aquilo que conhecemos. Por isso é tão importante sensibilizar para os valores naturais extraordinários que temos e também para a existência das espécies exóticas invasoras, assim como para as nossas ações. A libertação destas espécies na natureza é muito perigosa e é preciso chegar a todas as camadas do público para o evitar.”

Os frutos do dia

Miguel com o gimbal e Carolina com a perche seguem atrás dos cientistas quando estes atravessam, por baixo da ponte, para o outro lado, onde o ambiente é outro.

No início do troço, a acumulação de lixo, cuja maior parte era plástico, invoca cautela entre todos, para a atravessar sem cair. É de novo posto o equipamento de pesca elétrica e são vestidas as waders, pois progredindo no rio, volta-se a sentir o aperto da água. Aqui, o ambiente é mais escuro e frio, graças às sombras lançadas pelas paredes que cercam as margens.

A concentração requerida às filmagens paira no ar até que a monotonia é quebrada por um súbito grito. É o primeiro “Xenopus!”. A equipa de filmagens apressa-se a apanhar o momento da captura, captando planos da rã atordoada a ser manuseada, avaliada e de seguida guardada.

Rã-de-unhas-africana. Foto: Pedro Armada

Continua-se, passo a passo, na água escura e não tarda muito até se avistar mais uma rã. Segue-se o silêncio enquanto se espera que a descarga elétrica faça efeito. Quando o animal aparece imobilizado, é logo capturado por um camaroeiro.

Para a surpresa da própria equipa, no decorrer da próxima meia hora, são apanhadas mais três rãs, fêmeas e machos. “O dimorfismo sexual nesta espécie dita que as fêmeas são maiores que os machos, é assim que conseguimos distinguir o sexo dos animais logo a seguir à captura”, revela Carlota Léchaud.

O sol continua a baixar no horizonte à medida que se aproxima o final da tarde. O cansaço da equipa e o cumprimento dos objetivos da produção do vídeo vencem ao chamamento de se encontrarem mais rãs e a equipa decide terminar o dia de gravações.

Biólogos e produtores percorrem o caminho inverso na ribeira, numa mistura de silêncio – fruto da concentração, que pode evitar um prejuízo de milhares de euros na eventualidade do equipamento cair à água – e satisfação, fruto do dia bem realizado.

“Este dia foi desafiante, era uma equipa grande e vinda de origens variadas, tínhamos localizações diferentes e um dia curto, mas cada vez nos conhecemos melhor uns aos outros”, diz Miguel da Lengalenga Filmes. “Os biólogos têm sempre este charme e fascínio pelo que estão a fazer e isso passa para a câmara, o que fez do trabalho um dia bem passado”.

Foto: Pedro Armada

A satisfação dá lugar ao bom-humor enquanto as duas equipas arrumam os respetivos equipamentos e materiais, os entulham nos carros e se despedem. Isto não é um adeus, é um até já, até ao próximo “Xenopus!”, pois acredita-se na possibilidade da erradicação desta espécie do país e, embora muito trabalho já tenha sido feito nos últimos 15 anos, ainda há muito trabalho por fazer.

 

A rã-de-unhas-africana em Portugal

A Xenopus laevis, de nome comum rã-de-unhas-africana, é um anfíbio anuro, estritamente aquático, com origem na África subsariana. O nome comum advém da presença de unhas, parecidas com garras, no terceiro, quarto e quinto dedos das patas posteriores, algo apenas presente nas rãs deste género. A introdução desta rã e a sua posterior invasão no nosso país tem uma história curiosa. As fêmeas desta espécie ovulam quando injetadas com urina de uma mulher grávida, assim surgiram os primeiros testes de gravidez na década de 30 do século passado. Entre os anos 50 e 70, foi exportada da África do Sul para os laboratórios do mundo inteiro. Pensa-se que, nessa altura, tenha escapado de um laboratório em Oeiras, tornando-se uma espécie exótica e posteriormente invasora no nosso país. Em 2006, foi encontrada por acaso na Ribeira da Laje por uma equipa que fazia a sua monitorização e em 2008 foi encontrada na Ribeira de Barcarena. Desde aí começaram os esforços de controlo e erradicação da espécie.

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