Seixoeira. Foto: Afonso Rocha

A história de uma fotografia: uma seixoeira e os seus anilhadores numa noite de Outono

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Enquanto (quase) todos dormem, na calada da noite, um pequeno grupo de investigadores captura, estuda, regista e anilha dezenas de aves às portas de Lisboa. Afonso Rocha, um dos responsáveis do Grupo de Anilhagem do Estuário do Tejo, fez esta fotografia e conta-nos a sua história.

WILDER: Qual é a ave da fotografia?

Afonso Rocha: Trata-se de uma seixoeira (Calidris canutus).

Seixoeira. Foto: Afonso Rocha

W: Onde e quando foi tirada a fotografia?

Afonso Rocha: O momento foi registado na madrugada da passada terça-feira, 14 de Novembro, nas salinas do Samouco.

W: O que estavam a fazer e porquê?
Afonso Rocha: Na noite de segunda-feira realizámos uma sessão de captura e anilhagem de aves limícolas que se prolongou até à manhã do dia seguinte. O objectivo desta sessão foi a captura de fuselos (Limosa lapponica) para a colocação de dispositivos de seguimento gps e a marcação de aves com anilhas. Os dispositivos de seguimento gps permitem conhecer com precisão os movimentos das aves, por exemplo, nesta altura os movimentos diários entre os locais de alimentação e refúgio no estuário do Tejo e mais tarde descobrir os locais de reprodução no norte da Rússia. O fuselo é uma espécie difícil de capturar nesta altura do ano, devido à reduzida população que passa o inverno no estuário (~500 aves) e pelos poucos locais de refúgio de preia-mar nocturnos conhecidos e acessíveis. Mas a sorte protege os audazes e nessa noite conseguimos capturar quatro aves, o que permitiu colocar dois dispositivos.  

W: É normal a ave estar tão “colaborante”, tão tranquila, para a foto?

Afonso Rocha: Por volta das duas da manhã, enquando retirava a última ave da rede, ouço um bando de seixoeiras (a espécie vocaliza muito) a sobrevoar o local onde estava e seguido do som de aves a embater nas redes onde ficaram presas. Chamei a restante equipa que já tinha saído do tanque e começámos a extrair as aves das redes. No total capturámos 56 seixoeiras. É habitual as seixoeiras adotarem um aparente comportamento calmo durante a sua manipulação, o que permite tirar algumas fotografias como esta.   

W: O que é possível saber sobre esta ave em específico?

Afonso Rocha: Não temos muita informação sobre a ave que está na fotografia. Apenas sabemos que é uma ave adulta e que estava a terminar a muda das penas primárias, o que é comum nesta altura do ano em algumas espécies de aves limícolas invernantes no estuário do Tejo. A espécie não apresenta um dimorfismo sexual evidente e, para determinar o sexo destas aves durante o período não reprodutivo, é necessário retirar uma pena em crescimento ou uma amostra de sangue para posteriormente sexagem em laboratório.

Contudo, entre as seixoeiras capturadas três já tinham uma anilha, duas tinham sido recentemente anilhadas pelo grupo mas uma já era uma velha conhecida. Esta seixoeira foi capturada e anilhada pelo grupo em Setembro de 2012 nas salinas do Samouco. A ave foi anilhada como um adulto, o que significa que agora terá pelo menos 13 anos de vida. É um excelente registo de longevidade para a espécie, mas ainda a meio caminho do record de 26 anos e 8 meses de uma seixoeira observada no Reino Unido. Na altura pensámos que se poderia tratar de um migrador de passagem, mas a sua captura nesta altura do ano (quando os migradores de passagem já estão na costa oeste Africana), permite afirmar que é uma ave invernante no estuário do Tejo.

W: Para que serve o material que se vê em cima da mesa?

Afonso Rocha: Na mesa estava o material essencial para o processamento das aves capturadas, nomeadamente para a sua identificação, colocação de anilhas, medição de determinadas estruturas, a pesagem da ave e o registo da informação. Para além de anilhas metálicas da central nacional de anilhagem (cempa) com diferentes tamanhos e códigos, estavam na mesa os alicates de anilhagem que servem para fechar a anilha metálica em torno da pata das aves, alicates de pontas para a colocação das combinações de anilhas coloridas, réguas para a medição da asa, ou craveiras para medição do bico e do tarso (pata) e balanças digitais para registar o peso. Utilizamos ainda guias para identificar, sexar e determinar a idade das aves e folhas de anilhagem onde registamos toda a informação.

W: Quantas aves foram capturadas nessa sessão?

Afonso Rocha: Durante a sessão capturámos 144 aves de 9 espécies: 66 pilritos-comuns, 5 pilritos-de-bico-comprido, 3 pilritos-pequeno, 56 seixoeiras, 1 rola-do-mar, 8 tarambolas-cinzentas, 3 pernas-vermelhas, 4 fuselos e 2 gaivotas-de-asa-escura. Todas estas aves, após a sua captura, são colocadas em sacos de pano e transportadas até ao local de anilhagem, onde aguardam pelo processamento em mangas. Estas mangas permitem que as aves sejam agrupadas por espécie e que estejam calmas, pois encontram-se numa posição natural com espaço para se moverem e no escuro sem verem o que se passa no exterior. As aves vão sendo retiradas das mangas para o seu processamento, e concluído o registo e das ultimas medidas, são libertadas o mais rapidamente possível num local aberto para possam levantar voo e irem ao encontro do “seu bando”.

W: Qual a importância de sabermos mais sobre a ecologia e os movimentos das aves do estuário do Tejo?

Afonso Rocha: As aves são bons indicadores da qualidade dos habitats e reagem rapidamente a alterações que surjam. A informação recolhida com o seu seguimento permite-nos conhecer melhor os requisitos ecológico da espécie, como os principais locais de alimentação e de refúgio ao longo da estadia no estuário. Este tipo de tecnologia produz dados robustos que nos permitem ainda interpretar as ameaças existentes, mas também projectar impactos futuros sobre as populações de aves e seus habitats decorrentes de projectos previstos para as margens do estuário, como o novo aeroporto de Lisboa ou empreendimentos turísticos. 


Saiba mais.

Fique a conhecer melhor aqui o mundo da anilhagem de aves limícolas.

Helena Geraldes

Sou jornalista de Natureza na revista Wilder. Escrevo sobre Ambiente e Biodiversidade desde 1998 e trabalhei nas redacções da revista Fórum Ambiente e do jornal PÚBLICO. Neste último estive 13 anos à frente do site de Ambiente deste diário, o Ecosfera. Em 2015 lancei a Wilder, com as minhas colegas jornalistas Inês Sequeira e Joana Bourgard, para dar voz a quem se dedica a proteger ou a estudar a natureza mas também às espécies raras, ameaçadas ou àquelas de que (quase) ninguém fala. Na verdade, isso é algo que quero fazer desde que ainda em criança vi um documentário de vida selvagem que passava aos domingos na televisão e que me fez decidir o rumo que queria seguir. Já lá vão uns anos, portanto. Desde então tenho-me dedicado a escrever sobre linces, morcegos, abutres, peixes mas também sobre conservacionistas e cidadãos apaixonados pela natureza, que querem fazer parte de uma comunidade. Trabalho todos os dias para que a Wilder seja esse lugar no mundo.

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