Carine Azevedo apresenta-nos uma planta nativa portuguesa com flores incríveis, que por estes dias podemos observar um pouco por todo o país, especialmente em ambientes húmidos e zonas alagadas.
Os lírios fazem parte das nossas paisagens e parecem bastar-se a si próprios para criarem um ambiente único. Reuni-los em grupos permite realçar as suas folhas simples e alongadas, em contraste com a frágil complexidade das suas inflorescências. A sua única exigência é a proximidade da água, para que cresçam e floresçam.
São diversas as espécies que se podem encontrar na natureza, e cada uma delas conta com um detalhe específico, como a cor, o formato das flores, a época de floração, entre outros.
Embora a época de floração esteja quase a terminar, ainda é possível ver o lírio-amarelo (Iris pseudacorus) em flor.
Iridaceae
O lírio-amarelo, também vulgarmente conhecido como lírio-amarelo-dos-pântanos, lírio-bastardo, lírio-dos-charcos, ácoro-bastardo, entre outros, é uma espécie da família Iridaceae.
Esta família compreende 69 géneros botânicos e cerca de 2500 espécies, na sua maior plantas herbáceas, perenes, que se desenvolvem a partir de bolbos, cormos ou rizomas, de folhagem linear, concentrada na base do caule e flores grandes.
A família Iridaceae tem uma distribuição quase mundial, embora seja mais abundante e diversificada em África.
A maior importância económica da família reside nas espécies ornamentais, para jardins e outros espaços verdes, e nas plantas para flor de corte para arranjos florais, tais como as espécies dos géneros Gladiolus, Iris, Crocus, Freesia, Ixia, Sparaxis, Crocosmis e Tigridia.
Algumas espécies são também reconhecidas como importantes para a medicina, perfumaria e até como especiaria. Os estigmas das flores do Crocus sativus constituem o açafrão, a especiaria mais cara do mundo.
Em Portugal esta família está representada por 22 taxa, dos quais se destacam alguns bem conhecidos como o açafrão-bravo (Crocus serotinus), o lírio-do-Gerês (Iris boissieri) – espécie endémica da Península Ibérica –, o lírio-amarelo (Iris pseudacorus), o maios (Iris xiphium var. lusitanica) – espécie endémica de Portugal Continental e a Romulea columnae – a única espécie desta família que também é nativa nos arquipélagos da Madeira e dos Açores.
Lírio-amarelo
O género Iris, a que pertence o lírio-amarelo, compreende cerca de 300 espécies e em Portugal está representado por sete espécies nativas.
A parte mais atrativa das plantas do género Iris são, sem dúvida, as flores incríveis que produzem. Cada espécie possui flores com uma cor mais impressionante que a outra, podendo as cores ser mais claras, como o branco, ou vivas, como o azul ou o roxo, que se destacam em qualquer ambiente.
O lírio-amarelo (Iris pseudacorus) é uma planta herbácea, perene e rizomatosa. Possui um rizoma mais ou menos horizontal, delgado, de medula rosada, diâmetro uniforme, muito ramificado e provido de numerosas raízes fibrosas, flexíveis e pouco espessas.
Esta planta pode atingir, em média, 40 a 150 centímetros de altura e apresenta folhas ensiformes – ou seja, semelhantes à lâmina de uma espada –, glabras, longas e planas.
As folhas, de coloração verde-acinzentada, partem do rizoma, formando densas touças, onde também se formam as hastes florais, geralmente ramificadas, longas e cilíndricas.
A floração ocorre de abril a junho. A haste floral é formada por uma inflorescência terminal, com uma ou várias flores de coloração amarelo-ouro, com veios acastanhados ou púrpuras. Cada flor é formada por três sépalas pendentes e três pétalas eretas.
As flores têm uma curta duração, contudo sucedem-se umas às outras, permitindo que a planta se mantenha florida durante muito tempo.
As abelhas e outros insectos polinizadores, como os zangões, são responsáveis pela polinização destas flores (polinização entomófila).
O fruto é uma pseudo-cápsula cilíndrica, deiscente, formado por três valvas, onde se alojam numerosas sementes discóides, achatadas, lisas e castanho-escuras, que se desprendem rapidamente do fruto, e que são capazes de germinar mesmo depois de terem permanecido na água durante muito tempo.
Habitat
O lírio-amarelo é considerado uma planta cosmopolita, embora a sua área de distribuição nativa ocorra na Europa, Ásia e África. Em Portugal, ocorre em quase todo o território continental sendo menos comum no interior do Alentejo e no Algarve.
Esta planta desenvolve-se habitualmente em ambientes húmidos e em zonas alagadas, em comunidades de helófitas, acompanhada, por exemplo, por tabuas (Typha latifolia e Typha dominguensis), espadanas-de-água (Sparganium emersum subsp. emersum), caniços (Phragmites australis) e diversos juncos (Scirpoides holoschoenus, Juncus inflexus subsp. inflexus, Juncus subnodulosus, entre outros). Também se desenvolve em arrozais e ao longo das margens de cursos de água, como charcos, lagoas, lagos e valas.
O lírio-amarelo tem preferência por locais de exposição solar plena ou de meia sombra e por solos férteis, ricos em matéria-orgânica e húmidos. É uma planta tolerante aos solos ácidos, salinos e anóxicos e também suporta a submersão total e até mesmo períodos curtos de seca.
Na fase desfavorável ao seu desenvolvimento, nomeadamente durante o inverno, a parte aérea do lírio-amarelo tende a desaparecer, mantendo-se apenas o rizoma subterrâneo ativo. As novas folhas voltam a brotar na primavera seguinte.
Esta é uma planta muito vistosa, apreciada na jardinagem. Pode ser utilizada como planta ornamental, em jardins e outros espaços verdes, para decorar maciços e bordaduras e também pode ser plantada em vasos e floreiras. É uma planta ideal para marginar jardins aquáticos, em locais permanentemente húmidos e ao longo da margem de espelhos d’água naturais e artificiais.
As flores cortadas podem ser usadas em arranjos florais.
A Iris pseudacorus, além de embelezar, tem uma elevada importância ecológica, uma vez que oferece abrigo à vida aquática e controla a erosão e o assoreamento. Também funciona como bioacumulador, já que as suas raízes e rizoma absorvem metais pesados da água e do solo. Esta particularidade tem justificado a sua utilização em projetos de fitorremediação de águas poluídas, por exemplo.
Por outro lado, o rápido crescimento desta planta e o facto de formar densos tufos de folhas e de raízes e de ter uma elevada facilidade de reprodução através da dispersão de sementes ou até da divisão natural do rizoma, torna esta espécie invasora em vários pontos do mundo, uma vez que pode competir com a vegetação nativa de zonas húmidas, formando matagais quase impenetráveis, pondo também em risco o habitat da vida selvagem e o fluxo de água.
Medicinal e mítica
O lírio-amarelo apresenta algumas propriedades terapêuticas naturais importantes. No entanto, o seu uso é pouco aconselhável, pois algumas partes da planta, nomeadamente as folhas e especialmente o rizoma, frescos, contêm uma substância resinosa bastante irritante e tóxica, com propriedades colagogas, laxantes, adstringentes, catárticas, eméticas, emenagogas e odontálgicas – a iridina.
Se ingerida, esta substância pode causar vómitos, diarreia e outros distúrbios gástricos graves, além de, em contacto com a pele, poder provocar irritações e alergias.
Segundo registos antigos, quando seco, o rizoma desta planta perde parte da toxicidade e passa a atuar como um excelente adstringente, diurético, purgativo e desparasitante, tendo sido utilizado eficazmente no tratamento externo de feridas e no tratamento de dores de dentes, por exemplo.
As sementes têm usos carminativos e estomacais e foram usadas no passado como substitutas do café.
As raízes e o rizoma desta planta são também uma fonte de taninos que permitem a extração de corantes amarelos (da flor) e pretos (do rizoma), usados para tingir tecidos e também aplicados no processo de curtimento de peles e couros.
A denominação científica desta espécie está envolvida em algum misticismo.
O nome do género Iris é dedicado à deusa grega Iris, mensageira dos deuses do Olimpo, deusa do arco de luz – arco-íris – que une o céu com a terra. Segundo a mitologia grega, a deusa Iris assegurava a comunicação entre o mundo dos deuses e o mundo dos homens.
O restritivo específico pseudacorus deriva da combinação do prefixo grego pseudo-, que significa falacioso, mentiroso, com o termo –acorus, dedicado ao género botânico Acorus. Os dois termos combinados significam “falso Acorus”, género botânico a que pertencia anteriormente esta espécie, muito em particular devido à semelhança das suas folhas com as da Acorus calamus.
O cálamo-aromático (Acorus calamus), conhecido igualmente como cana-cheirosa, açoro, ou lírio-dos-charcos é uma espécie da família Acoraceae, de raízes perfumadas que também cresce e se desenvolve junto à água e que é tradicionalmente usado em situações de falta de apetite, mal-estar ou dores do sistema digestivo, podendo auxiliar como aperitivo ou digestivo, conforme seja ingerido antes ou depois da refeição. Também apresenta efeitos diuréticos e tranquilizantes, além de ajudar em casos de halitose (mau hálito).
O lírio-amarelo é símbolo da vida, sabedoria, fé e coragem. As suas flores são também símbolo de poder, soberania, honra e lealdade. É um símbolo usado na maçonaria, na alquimia e em algumas religiões.
A flor-de-lis é a figura heráldica associada à monarquia francesa e é o principal símbolo do escotismo mundial, além de ser a flor favorita de muitos pintores, como Van Gogh.
Com uma flor tão bonita, é natural que a Iris pseudacorus tenha este simbolismo.
Dicionário informal do mundo vegetal:
Herbácea – planta de consistência não lenhosa e verde.
Perene – planta que tem um ciclo de vida longo e que viver três ou mais anos.
Bolbo – caule subterrâneo de eixo curto, cujas folhas, transformadas em escamas, contém substâncias nutritivas de reserva e que se mantém ativo ao longo de todo o ano.
Cormo – caule subterrâneo, curto, idêntico a um bolbo, mas desprovido de gema, com ou sem escamas papiráceas ou fibrosas.
Rizomatosa – planta cujo caule é subterrâneo – rizoma – que cresce geralmente na horizontal, com aspeto de raiz, composto de escamas e gemas, como se de um caule aéreo se tratasse.
Ensiforme – folha semelhante à lâmina de uma espada, ou seja, longa, achatada, de margens agudas e paralelas e que termina em ponta.
Glabra – sem pêlos.
Touça – conjunto da parte aérea da planta.
Inflorescência – forma com as flores estão agrupadas numa planta.
Sépala – peça floral, geralmente verde, que forma o cálice e que protege externamente a flor.
Pétala – peça floral, geralmente colorida ou branca, que forma a corola e que protege os órgãos reprodutores da planta (os estames e o pistilo).
Pseudo-cápsula – fruto semelhante a uma cápsula – fruto seco, com várias sementes, que abre e deixa as sementes cair quando maduro.
Deiscente – fruto que, quando maduro, se abre naturalmente para libertar as sementes.
Valva – cada uma das peças em que se abrem as cápsulas.
Discóide – semelhante a uma disco, ou seja, de contorno circular, achatado, mas com a margem mais espessa do que o centro.
Helófita – planta que habita em locais encharcados ou húmidos. Planta típica de zonas pantanosas e de águas rasas
Anóxico – sem a presença de oxigénio.
Bioacumulador – tem a capacidade de absorver as substâncias químicas que se acumulam nos solos e nas águas.
Fitorremediação – processo de utilização de plantas para reduzir a concentração de substâncias tóxicas ou contaminantes no solo, na água ou no ar, de forma a reduzir ou até anular o efeito nocivo para o meio ambiente e para o ser humano. As plantas funcionam como agentes de purificação.
Todas as semanas, Carine Azevedo dá-lhe a conhecer uma nova planta para descobrir em Portugal. Encontre aqui os outros artigos desta autora.
Carine Azevedo é Mestre em Biodiversidade e Biotecnologia Vegetal, com Licenciatura em Engenharia dos Recursos Florestais. Faz consultoria na gestão de património vegetal ao nível da reabilitação, conservação e segurança de espécies vegetais e de avaliação fitossanitária e de risco. Dedica-se também à comunicação de ciência para partilhar os pormenores fantásticos da vida das plantas.
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