Existe uma velha macieira-brava (Malus sylvestris) num pequeno campo em frente a minha casa, que todos os anos me fascina pela floração abundante na primavera e pelo aparecimento dos seus pequenos frutos no início do outono.
Este ano não foi diferente. As suas flores apareceram na primavera como habitualmente mas, curiosamente, apenas uma pequena maçã vermelha apareceu no outono. Todas as outras devem ter caído antes sequer de terem vingado.
Dei por mim a pensar porque terá acontecido, e foi por isso que escolhi a macieira brava para ser a protagonista desta semana.
Macieira-brava
A macieira-brava é uma espécie da família Rosaceae parente próxima da macieira cultivada (Malus domestica) e de outras espécies, muitas das quais nativas e bem conhecidas, como o pilriteiro (Crataegus monogyna), a cerejeira (Prunus avium), o azereiro (Prunus lusitanica) e tantas outras.
É uma pequena árvore que pode viver até aos 100 anos de idade e crescer entre 8 a 12 metros de altura, mas que é mais comum na forma arbustiva. Forma copas amplas, arredondadas e muito ramificadas, sobre um tronco curto, de ritidoma castanho, fissurado, que se desprende facilmente em placas.
Os ramos são por vezes espinhosos e as folhas caducas são simples e surgem de forma alternada sobre os raminhos. Possuem forma elíptica, obovada ou arredondada e margem crenada a serrada. As folhas apresentam-se pilosas enquanto jovens, tornando-se progressivamente glabras na página superior e mais ou menos tomentosas na inferior. Possuem estípulas e pecíolo tomentoso, cujo comprimento corresponde a metade ou a um quarto do comprimento do limbo.
A floração, primaveril, ocorre entre os meses de abril e maio. Como a macieira-brava é uma espécie monóica, as flores masculinas e femininas crescem na mesma árvore. As flores são hermafroditas, regulares, pequenas, de cor branca ou rosada e agrupam-se em conjuntos de 4 a 6 flores. A corola é formada por pétalas livres e o cálice é densamente tomentoso.
O fruto é um pequeno pomo globoso – a maçã – de textura glabra, que exibe cores que variam do amarelo-esverdeado, ao verde ou avermelhado. Às vezes, os frutos apresentam manchas vermelhas ou brancas quando maduros. A maturação do fruto ocorre entre setembro e outubro, mas os frutos podem manter-se na árvore durante o todo o inverno.
Etimologicamente, o nome científico desta espécie é de fácil interpretação. O nome do género Malus é o nome latino da macieira e deriva do adjetivo malus que significa “mau, perverso, prejudicial”, talvez por ser considerada por muitos a “fruta do pecado”. O restritivo específico sylvestris, deriva de sylva – selva, referindo-se a espécies que crescem na floresta, em locais selvagens.
Valor para a vida selvagem
A macieira-brava é uma espécie nativa do continente europeu e do sudoeste Asiático. Em Portugal é mais comum a norte do território continental, nas regiões do Minho, Trás-os-Montes e Beira Baixa. O seu habitat é representado por florestas caducifólias, puras e mistas, com coníferas, preferindo a orla ou clareiras, também pode surgir em zonas de matas, sebes e matagais, na berma de caminhos e em bosques ribeirinhos.
É uma árvore rústica, de crescimento lento, que prefere uma exposição solar plena, ainda que suporte situações de semi-sombra. Desenvolve-se melhor em zonas de baixa altitude e é uma planta muito adaptável a vários tipos de substratos, desde que sejam preferencialmente pesados, húmidos, ricos em húmus e bem drenados. É tolerante a invernos rigorosos e é bastante resistente à geada, embora sofra muito com as geadas tardias, que prejudicam a floração.
A macieira-brava é uma espécie bastante atrativa para a vida selvagem, estando mais de 90 espécies de animais associadas a esta árvore, sobretudo aves, e alguns mamíferos e insectos.
As folhas são alimento para as lagartas de muitas borboletas e mariposas. As flores fornecem uma fonte importante de pólen e néctar para os insetos polinizadores, em particular para as abelhas, e os frutos são alimento para diversas aves, incluindo melros, tordos e corvos. Os ratos, ratazanas, raposas e texugos, também comem os seus frutos e assim como as aves ajudam na dispersão das suas sementes.
As sebes naturais e espinhosas formadas pela macieira-brava são também excelentes locais de refúgio para muitas espécies de fauna.
Usos da macieira-brava
Os frutos da macieira-brava também podem ser consumidos pelo Homem, frescos e secos, podendo ser transformados em compotas, geleias, sidra, sumos de fruta, vinagres, entre outros. Também podem ser cozidos, assados, cristalizados e usados na preparação de vários pratos de carne, sobremesas ou adicionados a cervejas e a ponches. As folhas são excelentes para a preparação de agradáveis infusões.
Na medicina popular, a macieira-brava é bem conhecida pelas suas propriedades curativas. As folhas possuem propriedades antibacterianas e os frutos atuam como adstringentes e laxantes. A casca e a raiz possuem propriedades refrigerantes, soporíferas e anti-helmínticas. As sementes contêm quantidades modestas de cianeto e podem causar intoxicações se consumidas em doses abundantes.
Alguns registos mais antigos ainda apontam a macieira-brava como remédio caseiro no tratamento contra catarro, diabetes, disenteria, disfunções biliosas, tosses, inflamações, infecções, escorbuto, verrugas e até tumores, no entanto estas propriedades, segundo dados etnobotânicos terão resultado da crença e da imaginação popular e não tanto das qualidades reais da planta para estes tratamentos.
A madeira da macieira-brava é de baixo valor económico, menos preciosa e durável que a da pereira. É aromática e a sua cor rosada e textura fina e uniforme, torna-a interessante para entalhar e tornear, para o fabrico de instrumentos de desenho. É muito bom combustível, podendo ser usada para lenha, libertando um aroma adocicado quando queimada. Da casca pode ser extraído um corante amarelo usado para tingir lã. Dos frutos pode extrair-se a pectina, que além de ser usada na culinária, é também usada como meio de cultura em laboratório.
Protagonista em jardins, lendas e histórias
A macieira-brava é utilizada como porta-enxerto para o cultivo das mais de 6000 variedades da macieira-cultivada (Malus domestica). E pode ser cultivada como planta ornamental em jardins e em parques, isolada ou em sebes mistas, em combinação com outras espécies, como por exemplo: a pereira-brava (Pyrus bourgaeana), o pilriteiro (Crataegus monogyna), a sorveira-brava (Sorbus aucuparia) e o sabugueiro (Sambucus nigra).
A beleza natural das suas pequenas flores primaveris e dos seus frutos outonais são também excelentes motivos para atrair a biodiversidade dos espaços verdes onde se encontra esta espécie.
O fruto da macieira-brava – a maçã – é um dos mais conhecidos do mundo, principalmente por ser protagonista de lendas e histórias muito famosas, como a do episódio bíblico que narra o pecado original, cometido por Adão e Eva no Jardim do Éden. Levados pela serpente ao pecado, ao colherem e comerem os frutos da árvore da vida, em desobediência ao Criador.
Os contos infantis também incluem histórias com este fruto, como o conto de fadas em que a Branca de Neve come a maçã envenenada pela madrasta malvada, ou nas histórias do Feiticeiro de Oz e de Guilherme Tell.
Shakespeare também fez referência às maçãs-silvestres em alguns das suas peças: “Sonho de uma noite de verão” (Midsummer Night’s Dream) e o “Trabalho do amor está perdido” (Love’s Labour Lost).
Mitologia e simbolismo
Mas existem muitas outras histórias, lendas e mitos, que envolvem a macieira e os seus frutos, provenientes de distintas civilizações.
Para os celtas a macieira-brava era vista como a árvore do amor. Conferiam-lhe poderes mágicos e devido ao seu aroma perfumado, queimavam a sua madeira durante os rituais de fertilidade e dela esculpiam pequenos objetos símbolo de amor. Os seus frutos eram vistos como o alimento dos deuses, sendo por isso realizados rituais de inverno, onde evocavam o Sol para assegurar que as colheitas do ano que estava a começar seriam boas. No outono, o ritual repetia-se para celebrar a colheita e agradecer a prosperidade.
Na mitologia grega esta árvore era sagrada para as deusas Hera e Afrodite e era tida como símbolo do amor, do conhecimento salvífico e da imortalidade e também deu origem ao símbolo da beleza feminina e da carnalidade.
Também para os povos europeus, a macieira-brava está associada ao amor e ao casamento, estando esta incluída em diversos rituais. Segundo a tradição, se lançarmos as sementes dos seus frutos ao fogo, enquanto se pronuncia o nome da pessoa amada, o amor é verdadeiro se as sementes explodirem. No entanto, se arderem silenciosamente, sem qualquer palpitar, essa pessoa deverá ser esquecida.
São muitos os motivos que me levam a gostar das plantas, mas quando elas despertam alguma curiosidade isso ainda as torna mais especiais. Esta macieira, já se encontra aqui em frente à minha casa há muitos anos, mas só agora é que a vi verdadeiramente.
Dicionário informal do mundo vegetal:
Caduca – folha que cai espontaneamente na estação do ano mais desfavorável.
Elíptica – folha com forma que lembra uma elipse, mais larga no meio e com o comprimento duas vezes a largura.
Obovada – folha com a forma de um ovo invertido, mais estreita na base do que no ápice da folha.
Crenada – margem com recortes arredondados.
Glabra – sem pelos.
Tomentosa – parte inferior da folha coberta de pelos moles e muito finos que formam uma camada mais ou menos densa que a reveste.
Estípula – estrutura semelhante a uma pequena folha, que se encontra na base do pecíolo, geralmente aos pares, uma de cada lado.
Pecíolo – pé da folha que liga o limbo ao caule.
Monóica – espécie que apresenta flores femininas e masculinas separadamente na mesma planta.
Hermafrodita – flor que possui órgãos reprodutores femininos (carpelos) e masculinos (estames).
Corola – conjunto das pétalas, que protegem os órgãos reprodutores da planta (os estames e o pistilo).
Cálice – conjunto das peças florais de proteção externa da flor – sépalas.
Pomo – fruto carnudo e indeiscente, de forma esférica.
Indeiscente – fruto que não se abre naturalmente quando maduro, não libertando as sementes.
Todas as semanas, Carine Azevedo dá-lhe a conhecer uma nova planta para descobrir em Portugal. Encontre aqui os outros artigos desta autora.
Carine Azevedo é Mestre em Biodiversidade e Biotecnologia Vegetal, com Licenciatura em Engenharia dos Recursos Florestais. Faz consultoria na gestão de património vegetal ao nível da reabilitação, conservação e segurança de espécies vegetais e de avaliação fitossanitária e de risco. Dedica-se também à comunicação de ciência para partilhar os pormenores fantásticos da vida das plantas.
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