Todas as estações são diferentes, e todas trazem consigo a mudança e muitas, muitas surpresas. O outono não é diferente, e numa época em que a maioria das plantas se prepara para o frio e as flores parecem escassear, outras, ainda que poucas, começam agora a colorir os caminhos com as suas pequenas e delicadas flores outonais.
É preciso alguma atenção, mas se estivermos atentos podemos ser surpreendidos com as colónias de pequenas flores brancas que por vezes ocupam vastas áreas, a desabrochar nas clareiras de matos tipicamente xerofílicos, nos prados, no subcoberto de pinhais, azinhais e sobreirais, ou até na margem dos cursos de água e nas dunas.
As campainhas-de-outono (Acis autumnalis) iniciam agora a sua época de floração, proporcionando um espetáculo memorável de pequenas “campainhas” brancas a baloiçar ao vento, muitas vezes a crescer lado a lado com outra espécie de tamanho semelhante e também ela típica do outono, a Cila-de-outubro (Prospero autumnale), cujas flores são em tons de roxo.
Campainhas-de-outono
A campainha-de-outono é uma planta da família Amaryllidaceae, que engloba outras espécies bem conhecidas, como os narcisos, as campainhas-amarelas, o alho, o cebolinho, entre outras. A beleza natural destas espécies, além das suas muitas utilizações como condimentares, hortícolas, ornamentais e medicinais, conferem a esta família botânica um grande valor económico e interesse paisagístico.
A maioria das plantas desta família apresenta um órgão subterrâneo – o bolbo – cuja principal função é o da acumulação de substâncias nutritivas de reserva e que se mantém ativo ao longo de todo o ano, ainda que a parte aérea dessas plantas seja renovada anualmente.
A campainha-de-outono é também vulgarmente conhecida como campainha-branca ou floco-de-neve-de-outono, devido à forma campanulada e cor das suas flores.
É uma pequena planta herbácea, perene, de muito pequeno porte, que pode crescer, sobre o solo, entre 11 a 30 centímetros de altura. É uma espécie geófita, cujas folhas só se formam depois de brotarem as flores.
É provida de um bolbo ovóide, com túnica externa revestida por uma membrana consistente e de cor castanha, que funciona como órgão subterrâneo de reserva, que lhe permite manter um ciclo de vida perene.
As folhas são basais, surgem em grupos (até seis folhas por planta), e mantêm-se à superfície do solo até à primavera. São inteiras, verde-escuras, filiformes, muito finas, semicilíndricas e não possuem pecíolo. São habitualmente mais curtas que o escapo floral, que pode crescer entre 10 a 23 centímetros de altura.
Quanto ao escapo floral – nome que se dá à haste floral – é filiforme, liso, sólido e de cor avermelhada. Cada bolbo pode produzir entre dois a quatro escapos florais.
A floração ocorre desde o final do verão até ao final do outono, concentrando-se especialmente entre os meses de setembro e novembro. As flores são hermafroditas, actinomorfas, em forma de sino, e surgem pendentes, solitárias ou reunidas em conjuntos de duas a quatro flores em cada haste. As sépalas e as pétalas reúnem-se indiferenciadas em 6 tépalas pontiagudas, de cor branca, tingida de rosa ou vermelho na base. Imediatamente abaixo do pé que sustenta as flores existe uma bráctea grande, membranosa e lanceolada.
O fruto é uma cápsula deiscente, subglobosa, segmentada em três cavidades internas – os lóculos, cada um com com duas a três sementes, globosas, negras e brilhantes. A maturação dos frutos ocorre muito rapidamente, pois desde a senescência floral até à abertura natural do fruto passam aproximadamente 20 a 30 dias.
Endemismo mediterrânico
A campainha-de-outono é um endemismo da região do Mediterrâneo Ocidental, estendendo a sua distribuição nativa pelo sul e oeste da Península Ibérica (Espanha e Portugal), o norte do continente africano (Argélia, Marrocos e Tunísia) e as grandes ilhas mediterrânicas (Baleares, Sardenha e Sicília).
Em Portugal distribui-se por quase todo o território do continente, estando apenas ausente no extremo nordeste. Cresce numa ampla gama de habitats, em substratos arenosos, argilosos, bem drenados e preferencialmente com exposição soalheira e protegida do vento. Pode surgir em terrenos incultos, campos cultivados, azinhais, montados ou até pinhais, em áreas abertas, em locais rochosos ou até próximo de cursos de água.
As campainhas-de-outono são bastante interessantes do ponto de vista ornamental, tendo até sido distinguidas com um ‘Award of Merit Garden’ (Prémio de Mérito de Jardim) da Royal Horticultural Society pelo importante desempenho que estas plantas possuem nas condições de cultivo do Reino Unido, onde é vulgarmente conhecida como “autumn snowflake”.
Os caules delgados, verdes ou avermelhados, e as pequenas flores brancas, contrastam com a folhagem verde-escura das densas touças que se formam quando os bolbos ficam mais juntos. Estas plantas, de fácil cultivo, são ideais para jardins de pedra, em pequenos canteiros ou até em vasos e floreiras. As cápsulas produzem sementes em abundância.
Ainda que não haja registos particulares sobre as suas propriedades medicinais, sabe-se que a campainha-de-outono possui elevadas quantidades de alcalóides tóxicos de isoquinolina, como a licorina e a narcissidina.
Flores silvestres
Esta planta é fácil de identificar pelas suas pequenas flores outonais, além de muitas vezes crescer em pequenos grupos junto com outra bolbosa de outono: a cila-de-outubro (Prospero autumnale), cujas flores possuem tons de rosa a roxo.
A campainha-de-outono consta da lista de espécies em estado de conservação “Pouco Preocupante” da União Internacional para a Conservação da Natureza (UICN). Segundo a Lista Vermelha da Flora Vascular de Portugal Continental, estima-se que as populações nativas desta espécie sejam numerosas, não se identificando atualmente qualquer tipo de ameaça ou pressão significativa, não requerendo, para já, qualquer medida de conservação adicional.
Esta planta pode ser confundida com uma espécie muito semelhante, a delicada Acis trichophylla, cujo nome comum se desconhece em Portugal.
Ambas as espécies desenvolvem-se no mesmo tipo de habitats, no entanto florescem em épocas distintas do ano. A campainha-de-outono (Acis autumnalis) floresce no final do verão e durante todo o outono, enquanto que a Acis trichophylla, que se desenvolve habitualmente em grupos maiores, floresce na primavera, entre os meses de fevereiro a abril.
A Acis trichophylla possui também uma área de distribuição nativa mais restrita, sendo originária das regiões centro e sul da Península Ibérica (Portugal e Espanha) e de Marrocos. Em Portugal é mais predominante na faixa do Litoral, sobretudo no Centro e Sul.
Acis ou Leucojum
Originalmente esta espécie foi nomeada por Lineu como pertencente ao género Leucojum. Mais tarde, estudos genéticos e morfológicos determinaram que esta espécie, bem como outras espécies do género, deveriam ser agrupadas num novo grupo genérico – Acis. No entanto, esta mudança tem sido alvo de muitos estudos e reviravoltas, havendo muitos autores que continuam a usar a classificação anterior – Leucojum autumnale para a campainha-de-outono (Acis autumnalis) e Leucojum trichophyllum para a espécie Acis trichophylla, que floresce na primavera.
A etimologia botânica destas espécies é também complexa e algo duvidosa.
A denominação científica Leucojum deriva do grego “leukòs” + “íon” que significam, respetivamente, branco + violeta, provavelmente devido à cor branca das flores e à delicada fragrância a violetas.
A denominação Acis estará associada à lenda grega relativa ao triângulo amoroso entre Acis, Galateia e Polifemo. Segundo a lenda, Acis era um jovem pastor enamorado de Nereiade Galateia, a ninfa do mar. O ciclope Polifemo, também ele apaixonado por Galateia, mas cujo amor não era correspondido, por ciúmes atacou e matou Acis com uma rocha. Perante tal tragédia, Galateia transformou o seu amado num espírito imortal e o sangue derramado em água, traçando o curso de um rio até ao mar e assim possibilitando o reencontro dos dois na foz.
No entanto, para muitos outros, esta associação entre o mito e o nome da planta não corresponde à verdadeira origem do nome. Uma outra linha de raciocínio sobre a etimologia botânica do termo Acis é sustentada pelo significado do termo grego “Akis”, em latim “Acis”, que de entre os seus possíveis significados pode referir-se a um “objeto pontiagudo, afiado”, possivelmente alusivo às suas folhas.
Por sua vez, o restritivo específico autumnalis refere-se à sua floração outonal.
Fica o desafio: se quer conhecer e encontrar estas pequenas e singelas flores outonais, explore agora a natureza. Na primavera, volte aos mesmos locais e encontrará a sua congénere primaveril.
Dicionário informal do mundo vegetal:
Xerofílicos – plantas adaptadas aos climas secos, a períodos de seca mais ou menos prolongada. Que conseguem viver com pequenas quantidades de água.
Geófita – planta que possui órgãos de reserva (bolbo, tubérculo, rizoma, etc.) onde são armazenados nutrientes que lhes permitem sobreviver em condições climáticas adversas. Geralmente estas plantas, durante o período mais desfavorável ao seu desenvolvimento, secam todos os órgãos aéreos (folhas, flores, etc.), mantendo apenas o seu órgão subterrâneo de armazenamento ativo. As folhas, as flores e os restantes órgãos aéreos voltam a surgir quando as condições de desenvolvimento forem novamente favoráveis.
Escapo – haste floral.
Hermafrodita – flor que possui órgãos reprodutores femininos (carpelos) e masculinos (estames).
Actinomorfa – flor com simetria radial, ou seja, a flor pode ser dividida em várias partes iguais.
Sépala – peça floral, geralmente verde, que forma o cálice.
Cálice – conjunto das sépalas que protegem externamente a flor.
Pétala – peça floral, geralmente colorida ou branca, que forma a corola.
Corola – conjunto das pétalas, que protegem os órgãos reprodutores da planta (os estames e o pistilo).
Tépala – peça floral não diferenciada em pétala ou sépala.
Bráctea – folha modificada, localizada na base da flor que a protege enquanto está fechada.
Deiscente – fruto que, quando maduro, se abre naturalmente para libertar as sementes.
Lóculo – cavidade ou compartimento do fruto, onde se alojam as sementes.
Endémica – espécie nativa de uma região, com uma distribuição muito restrita.
Todas as semanas, Carine Azevedo dá-lhe a conhecer uma nova planta para descobrir em Portugal. Encontre aqui os outros artigos desta autora.
Carine Azevedo é Mestre em Biodiversidade e Biotecnologia Vegetal, com Licenciatura em Engenharia dos Recursos Florestais. Faz consultoria na gestão de património vegetal ao nível da reabilitação, conservação e segurança de espécies vegetais e de avaliação fitossanitária e de risco. Dedica-se também à comunicação de ciência para partilhar os pormenores fantásticos da vida das plantas.
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