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Presenciando uma cena de caça

14.12.2015

Dias soalheiros, alguns inesperadamente quentes para um Outono que se foi aproximando do fim, fizeram esquecer por algum tempo a já curta distância que nos separa do início da estação do ano mais fria e agreste.

Nas várias saídas de campo empreendidas nas últimas semanas, borboletas e libélulas contribuíram para tornar recorrente uma certa lembrança nostálgica do período do ano que ficou para trás, feito de dias grandes e em que o sol brilhou com vigor máximo. Nas horas que envolvem o meio-dia, lagartos e lagartixas continuaram a expor-se sobre os penhascos, privilegiando as faces viradas a sul que mesmo a maiores altitudes, continuaram a proporcionar-lhes o calor que aí procuram e que chega a ser intenso nas zonas abrigadas do vento. Os bosques foram perdendo grande parte da sua folhagem, mas saindo deles e ganhando altitude, algumas das espécies de plantas mais comuns nas manchas de matos, exibem flores. A do tojo, de um amarelo intenso, é a mais exuberante.

Entre os sinais de mudança, inevitáveis nesta época de transição, é notória a maior discrição dos animais selvagens. Menos sons, menos movimentações, menos encontros, menos avistamentos. As longas esperas para os tentar observar são, também por isso, menos produtivas. Mesmo assim e com a sensação de ainda persistir algo do Verão, neste final de Outono, fui investindo, continuando a aguardar em locais bem escolhidos para o efeito, um qualquer animal selvagem que pudesse surgir.

Há semanas atrás, precisamente num desses dias de um “Verão de S. Martinho” prolongado, encaminhava-me para um grande silvado no sopé de uma encosta serrana, quando sobre mim ouvi um piar muito próximo. A surpresa foi dupla. Primeiro, por se tratar de uma águia-cobreira, espécie que por norma nesta altura do ano já deixou o território na sua habitual migração para sul. O tempo favorável que também elas foram usufruindo por cá, justifica esta presença algo tardia. Mas foi o facto de se fazer ouvir tão de perto que me deixou um pouco intrigado.

Do aglomerado espesso de silvas a vista é ampla. O terreno – aberto, algo pedregoso, revestido por tufos esparsos de vegetação rasteira – estende-se por uma área considerável até atingir a mancha florestal de carvalhos, azevinhos e salgueiros que marginam um pequeno curso de água. Ainda a acomodar-me, bem dissimulado na vegetação, eis que uma ave, grande, se precipita no solo, a cerca de quinze a vinte metros de distância! Um encontro interessante, foi o que me veio à cabeça, instantaneamente. Tem que ser! Refeito da surpresa e evitando ser descoberto, contorci-me o necessário para tentar entender o que se estava a passar.

Era ela, a cobreira! Num grande alvoroço e bastante confusão, as asas da ave-de-rapina evidenciam-se muito claras quando ela as abre e as levanta para se equilibrar nos movimentos rápidos e vigorosos em que se debate com outro animal que lhe dá luta, mas que ainda não consegui ver. É uma cobra, contorcendo-se em torno do ponto onde a águia lhe cravou as garras.

A luta prossegue enquanto rebobino os acontecimentos. Ela estaria por perto e já teria avistado a cobra, quando eu, ao passar junto a esta (sem que a tenha detectado) a obriguei a afastar-se. Imaginando-me entretanto fora da zona, a cobreira voltou pouco depois, desta vez concretizando o ataque.

Tudo se passa rapidamente, com a águia a dominar a presa e a refrega a perder intensidade. Mas o que eu menos desejava, interferir nesta caçada, aconteceu. Durante a contenda a cobreira foi recuando e puxando a cobra para terreno mais aberto. Mesmo imóvel, não tinha como me esconder e evitar que a águia-cobreira me visse, atendendo à escassa distância a que se encontrava. Assim que a águia me detectou – apercebi-me desse instante através da lente fotográfica, quando ela me fixou, com um olhar penetrante – levantou imediatamente, deixando a cobra no solo. Desalentado, tratei de sair dali também.

O ofídio, uma cobra-de-ferradura, ainda estava vivo. Fui-me afastando, sempre a controlar o local, até ficar a quase um quilómetro de distância. Nas duas horas seguintes a águia-cobreira não voltou. Ao cair da tarde, no regresso de uma extensa caminhada, voltei a aproximar-me da zona em que predador e presa se tinham confrontado. A cobra permanecia no local.

No dia seguinte já não, ficando sem resposta a questão de saber quem possa ter beneficiado da minha inadvertida interferência numa cena do quotidiano da vida selvagem. Foi certamente mais uma das muitas em que frequentemente condicionamos o desenrolar dos acontecimentos protagonizados pelos seres que na Natureza tanto nos motivam. Na maior parte das vezes nem sequer damos conta dessas intromissões, apenas percepcionando reacções provocadas por estes inesperados encontros.

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