Todos os meses, o projecto “Atlas das Paisagens Literárias de Portugal Continental”, ligado à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, dá-lhe a conhecer as paisagens e a biodiversidade que povoam as obras literárias de escritores portugueses.
“Ignoro em que altura se terá introduzido na região o cultivo extensivo da oliveira, mas não duvido, porque assim o afirmava a tradição pela boca dos velhos, de que por cima dos mais antigos daqueles olivais já teriam passado, pelo menos, dois ou três séculos. Não passarão outros. Hectares e hectares de terra plantados de oliveiras foram impiedosamente rasoirados há alguns anos, cortaram-se centenas de milhares de árvores, extirparam-se do solo profundo, ou ali se deixaram a apodrecer, as velhas raízes que, durante gerações e gerações, haviam dado luz às candeias e sabor ao caldo. […] hoje, em lugar dos misteriosos e vagamente inquietantes olivais do meu tempo de criança e adolescente, em lugar dos troncos retorcidos, cobertos de musgo e líquenes, esburacados de locas onde se acoitavam os lagartos, em lugar dos dosséis de ramos carregados de azeitonas negras e de pássaros, o que se nos apresenta aos olhos é um enorme, um monótono, um interminável campo de milho híbrido […]
[…] Contam-me agora que se está voltando a plantar oliveiras, mas daquelas que, por muitos anos que vivam, serão sempre pequenas. Crescem mais depressa e as azeitonas colhem-se mais facilmente. O que não sei é onde se irão meter os lagartos.”
José Saramago, As Pequenas Memórias
Há beleza e preocupação nesta memória de José Saramago, nobel e exímio paisagista. Para as entender, e fazer jus à mais prestigiosa árvore mediterrânea, parafraseando o geógrafo Orlando Ribeiro, é preciso recuar no tempo, mergulhar nas ciências da terra, nas ciências sociais e humanas, nas artes e nas religiões.
A oliveira (Olea europeia) gosta de verões quentes e secos, invernos suaves e prefere resguardo dos ventos húmidos do mar. Pouco exigente, prefere solos básicos e com boa drenagem. O solo profundo referido no texto é metafórico, as raízes da oliveira são superficiais, facilmente extirpáveis pelo homem e pela natureza.
A oliveira resulta da domesticação do zambujeiro, há milhares de anos, possivelmente no Crescente Fértil. No Antigo Egito, o seu óleo era usado na medicina, cosmética, iluminação e lubrificação. O “néctar que parecia ouro” entrou na alimentação das classes privilegiadas na Grécia Antiga, que imortaliza a oliveira como símbolo de paz, figurada na vitória da deusa Atena sobre Posídon, na disputa pela cidade. Entra na Península Ibérica trazida por Fenícios, Tartéssios, Árabes (Al-zait), Visigodos e Romanos, que a elegeram como marca de poder, símbolo de pacificação e progresso. Na Idade Média, o “óleo sagrado” das ordens religiosas servia em sacramentos, na alimentação e tratamentos, pois “azeite de oliva todo o mal tira” (António Delicado, século XVII). O azeite passa a hábito alimentar, embora de luxo, no séc. XIV, assim permanecendo até meados do séc. XX. Nos anos 20, sobretudo nos anos 60, mudanças sociais (êxodo rural e aumento de salários), a par de alterações (bio)tecnológicas (mecanização e agroquímicos) e políticas (cooperativismo, financiamentos comunitários, investimentos estrangeiros) permitiram produzir, armazenar e distribuir o azeite em quantidade suficiente para a alimentação quotidiana e responder à crescente procura, no contexto da dieta mediterrânea (Património Cultural Imaterial da Humanidade, UNESCO, 2013) e do mercado globalizado.
Em consequência, os bosques salpicados de robustas oliveiras, ou mimosas árvores junto às casas, citadas no livro do Génesis, no Novo Testamento ou no Alcorão, deram vez ao olival estreme, há cem anos. Primeiramente, grandes arroteias ganharam encostas, as mais íngremes sustidas por socalcos, à conta de mão de obra volumosa e trabalho duro. Em seguida, surgem vastos “mares” de exemplares raquíticos, dependentes da irrigação, árvores alinhadas, como soldados na batalha da grande produção, da exportação e do lucro. A erosão avança violentamente nas vertentes e, nas planícies, a lavra plurianual conduz à carência de nutrientes orgânicos e à falta de capacidade de retenção de água no solo. Urge o uso generalizado de práticas biológicas, podas e compassos ajustados, uma escolha harmoniosa e criteriosa das variedades a plantar.
Chamem-se os lagartos! Apele-se à sabedoria de Atenas, à coragem de Noé, à abdicação de Cristo e à humildade de Maomé, defenda-se uma paisagem histórica e uma árvore que zela a saúde humana, embeleza jardins e espaços verdes, e é símbolo do nosso património coletivo.
Ana Lavrador pertence ao grupo de investigadores ligados ao “Atlas das Paisagens Literárias de Portugal Continental”. Esta é a sétima crónica da série Escrita com Raízes.