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Árvore do género dos freixos. Foto: Jean-Pol GRANDMONT / Wiki Commons

Freixo, o avô dos ninhos…

16.03.2021

Todos os meses, o projecto “Atlas das Paisagens Literárias de Portugal Continental”, ligado à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, dá-lhe a conhecer as paisagens e a biodiversidade que povoam as obras literárias de escritores portugueses.

“Um pouco mais para lá era o freixo, o avô dos ninhos, como lhe chamava antigamente aquele tio Berlengas que estava ali a mastigar sobremesas de cardeal, envolvido num capote esburacado. Alexandra, do lugar onde se encontrava, não podia ver a árvore patriarcal mas pensava-a ao centro do pátio de entrada a fazer frente à solidão dos campos. Um baloiço, lembrou-se Alexandra; na sua infância havia um baloiço no freixo. Às vezes subia tão alto, tão alto, que ela abrangia a charneca em toda a sua extensão até um plaino de sobreiros desgarrados que, ao anoitecer, se tornavam ferozes e malditos. Para ela era um mistério de ninhos, o velho freixo. Verão e férias de colégio estavam assinalados por essa presença porque assim que chegava à herdade tinha o tio Berlengas a apontar-lhe para a árvore e a decifrar a ramaria: Lá em cima, sobrinha, lá em cima. E então era um revoar de mistérios a transparecer daquela árvore, ninhos e mais ninhos mas todos secos e desabitados como se fossem uma memória lendária.”

José Cardoso Pires, Alexandra Alpha 

Conhecido pelo nome comum de freixo, o Fraxinus angustifolia é uma espécie de árvore da família das Oleaceae. Muito resistente ao frio e ventos, aprecia as margens de cursos de água e bosques. De porte médio, pode atingir cerca de 20 metros de altura, apresentando uma copa alta e irregular. De folha caduca, muito ornamental, dificilmente passa despercebida, ficando na memória de Alexandra, a protagonista do romance de Cardoso Pires (1925 – 1998), para quem “Verão e férias de colégio estavam assinalados por essa presença”.

A árvore surge, também, associada às histórias do Tio Berlengas, que, decerto, entre abril e maio, admirava, “ao centro do pátio de entrada”, as flores em cachos pendentes que surgiam antes do aparecimento das folhas, preparando-se para mais tarde, no verão, “decifrar a ramaria” à sobrinha. Chamava, insistentemente, a sua atenção: “Lá em cima, sobrinha, lá em cima…” 

Região onde se enquadra este excerto literário. Autoria: Daniel Alves

Em Portugal, o freixo encontra-se disseminado por todo o território, nomeadamente no Alentejo, “a fazer frente à solidão dos campos”. A madeira do freixo, sendo muito elástica, sólida e fácil de trabalhar, era usada na construção de alfaias agrícolas e, atualmente, por idênticas razões, em equipamentos desportivos.  Como árvore resistente é, por vezes, também aproveitada para a diversão infantil, tal como descrito no excerto em epígrafe: “Um baloiço, lembrou-se Alexandra; na sua infância havia um baloiço no freixo.” A resistência transmite segurança, permitindo subir mais alto e dilatar o olhar: “Às vezes subia tão alto, tão alto, que ela abrangia a charneca em toda a sua extensão até um plaino de sobreiros desgarrados”. 

Olhando para o cimo da árvore, Alexandra via “ninhos e mais ninhos mas todos secos e desabitados”. Todavia, para os que têm o privilégio de conviver com esta espécie arbórea, não poderá a mesma servir como um ninho invertido? Quantos de nós, nas tardes quentes e dolentes do interior alentejano, não nos sentimos protegidos pelo Túnel das Árvores, na estrada que liga Marvão a Castelo de Vide? Os altos e frondosos freixos que constituem esta alameda encontram-se classificados como ‘Árvores de Interesse Público’, desde 1997.

Protagonista de episódios mitológicos, histórias de ficção e lendas, o freixo também enriqueceu a toponímia. No nosso país, encontra-se em cerca de uma vintena de povoações, maioritariamente a norte do Tejo. Freixo de Espada à Cinta deve o seu nome à lenda envolvendo um guerreiro que, de acordo com uma das muitas versões, ostentava nas suas armas um freixo e uma espada. O freixo, que embeleza o centro histórico da vila, foi classificado em 2018 como monumento vivo de ´Interesse Público’ e batizado de Duarte de Armas, pelo facto de este escudeiro de D. Manuel I já o ter desenhado no Livro das Fortalezas (1509-10). Com mais de 500 anos, a “árvore patriarcal”, orgulho dos freixenistas, resiste ao tempo, naturalmente, eivada de “memória lendária”, tal como o freixo citado em epígrafe, que nos dá liberdade para imaginar o “revoar de mistérios” que o passado oculta.


Escrita com Raízes

Maria Mota Almeida pertence ao grupo de investigadores ligados ao  “Atlas das Paisagens Literárias de Portugal Continental”. Esta é a terceira crónica da série “Escrita com Raízes”.

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