Foto: Maria Alho

Crónicas naturais: Do tamanho do mar

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O mar que vemos é apenas uma minúscula fração do oceano, lembra-nos o biólogo Paulo Catry, que nos leva com ele em viagem e nos fala das aves marinhas e de outros seres misteriosos que vivem nessa vastidão azul.

Julho 2024

As linhas que desenhamos na estrada ou na rota de um avião são de uma única dimensão. Se formos atentos à paisagem podemos dar-lhes um pouco de espessura, mas escapa-nos a grandeza das superfícies, mormente dos volumes. A complexidade visível de muitas das paisagens terrestres ajuda-nos, ainda assim, a reconhecer a largueza dos espaços quando contemplamos um vale amplo, encavalitados num promontório de montanha. Já no mar, não há estrutura que se veja. Debaixo da superfície a vista não se estende. Acima das ondas, é tudo uniforme, exceto talvez sobre a linha do litoral. Mas as águas do litoral são uma fração minúscula do oceano. Um tudo de nada do azul.

É possível navegarmos até a uma ilha onde nidifiquem dezenas ou centenas de milhares de aves marinhas de uma qualquer espécie e não vermos nenhuma durante a viagem. Já tive a experiência várias vezes, como a caminho das Selvagens, onde se reproduzem cerca de 100.000 casais de calcamares Pelagodroma marina. Viajando entre a Madeira e a Selvagem Grande, atravessamos, ao longo de 150 milhas (quase 300 quilómetros), uma parte importante das áreas de alimentação dos calcamares nacionais, mas não é difícil passar sem ver nenhum. A estreita faixa da nossa rota representa nada na superfície do oceano. Os calcamares devem despender muito tempo poisados na água, a nossa linha cruza esta imensa flotilha, mas o acaso dita que não intercete nenhum dos seus membros.

Calcamar (Pelagodroma marina). Foto: JJ Harrison

A profundidade média do oceano global é de uns 3700 metros. Se os calcamares nos passam despercebidos à superfície, que dizer dos seres que habitam essas colunas de água que estão num lusco-fusco permanente, quando não na total escuridão? Aos cem metros já pouco se vê, aos mil só mesmo alguma luminescência biológica. Há mil e trezentos milhões de quilómetros cúbicos de mar. São 1026 litros de água.

E há estimativas que sugerem que um litro de água pode conter largas centenas de milhões de organismos marinhos (cianobactérias e bactérias, sobretudo). E dez vezes mais vírus. Tantos vírus num litro de água do mar como pessoas à superfície da Terra. Cianobactérias como os Prochlorococcus são mais numerosas no oceano do que as estrelas no universo. Também há seres de grande porte, claro está e, com tanto mar, há ainda mamíferos marinhos de tal forma escondidos (como certas baleias-de-bico) que apenas são conhecidos por ocasionais cadáveres que vêm dar à praia.

No mar aberto, entre os 200 e os 1000 metros de profundidade, vive uma enorme diversidade de peixes (e de lulas) que nunca chegam à praça. Estes peixes, chamados mesopelágicos, são na sua maioria pequenos (menos de meio palmo de comprido), de cor negra ou muito prateada. Muitos possuem fotóforos luminosos e caras feias, olhos grandes e bocas ainda maiores revestidas de dentes aguçados. São os peixe-lanterna (Myctophidae – uma profusão deles), os pais-velhos (Sternoptychidae) e muitos outros sem nome em português. O anonimato destes peixes, de quase todos desconhecidos, não nos deve iludir. Os peixes mesopelágicos são os mais numerosos de todo o planeta, superando facilmente em número e biomassa os vastíssimos stocks de sardinhas, cavalas, arenques, anchovas e peixinhos afins.

Pai-velho (família Sternoptychidae), um dos muitos peixes mesopelágicos. Foto: NOAA

Segundo os tratados de ictiologia, a maioria destes peixes e lulas mesopelágicos nunca chega junto da superfície, apesar de realizarem movimentos verticais que os trazem mais para cima a coberto da escuridão da noite. Ao amanhecer, voltam a mergulhar para a negritude gelada das águas profundas. E, contudo, há aves marinhas que, não estando talhadas para as profundezas, praticamente só se alimentam destes peixes e lulas dos abissos. Não se sabe como é que isto é possível. Talvez haja uma proporção minúscula (invisível aos olhos dos estudiosos) desses pequenos peixes que por uma razão desconhecida (doença, cegueira…) se percam e cheguem mesmo à tona das águas. 

Duas das três aves marinhas mais abundantes do nosso mar escondem-se perfeitamente na imensidão oceânica: nem de nome são familiares do grande público e poucos (tirando os marítimos) as veem. Calcamares e almas-negras Bulweria bulwerii são aves que se alimentam de noite, sobretudo, e que nunca chegam perto dos litorais por onde nos movimentamos. Vivem sempre sobre o mar profundo e nidificam em ilhas remotas. Vivem da espuma dos stocks de mesopelágicos que aflora à superfície, algo de tão esparsamente distribuído que só quem percorra distâncias imensas logrará daí arrecadar sustento; ainda que seja tão somente a provisão de uma ave pequenita.

Alma-negra (Bulweria bulwerii). Foto: Maria Alho

Nas ilhas Desertas, junto à casa dos Vigilantes, há um banco de pedra escura, basalto denso que guarda o calor do sol já a noite caída. Fica-se sentado de costas para a poalha das luzes amarelas da Madeira, distante. Em frente, ergue-se o Bugio e a amplitude oceânica. Com as primeiras estrelas regressam milhares de almas-negras, vindas da faina da pesca do largo que chega a levá-las para lá dos Açores. Percorrem, em média, 4000 quilómetros em semana e meia, quase sem uma batida de asas, sempre a surfar o vento logo acima das vagas. Não é fácil encontrar os peixes que não são supostos chegar à superfície. As alminhas localizam as presas na escuridão graças a um olfato apuradíssimo, que isto da fineza da deteção de cheiros não é exclusivo de perdigueiros.

Fico sentado no banco de pedra com as almas-negras que revolteiam sobre a cabeça, volta e meia penteiam-me o cabelo, de tal forma passam perto. Totalmente mudas em voo, emitem muitos chamamentos de dentro dos ninhos abrigados sob as rochas, uma espécie de latidos abafados e profundos, distantes, simpáticos.

O oceano é de tamanho bastante para abastecer enormes colónias de aves marinhas, invisíveis, com peixes alumiados que só fortuitamente se chegam à flor das ondas.


Saiba mais.

Leia aqui outros textos já publicados por Paulo Catry, professor e investigador do Mare – Marine and Environmental Sciences Centre, Ispa – Instituto Universitário, na série Crónicas Naturais. E também os artigos publicados em 2017, quando esteve à procura de aves marinhas no meio do Oceano Atlântico.

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