Foto: Paulo Catry

Crónicas naturais: Côa, Águeda, Erges

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Paulo Catry, professor e investigador do ISPA – Instituto Universitário, leva-nos consigo em expedição pela serra das Mesas, território de fronteira e de nascentes habitado agora pelos rigores do Inverno.

Serra das Mesas, janeiro 2022

Neste vértice serrano há gotas de chuva que caem de um lado e chegam ao Porto; outras chovem uns metros mais adiante, correm para sul e desaguam em Lisboa. Das que vão para cima (vão todas para baixo, mas há as dos nossos mapas, a pino, com o norte ao alto), das que vão para cima, dizíamos, umas fazem caminho em Espanha e depois fronteira, outras seguem paralelas por Portugal; Águeda e Côa, respetivamente, irmãos até ao Douro. Outras gotas, ainda, correm por regatos sem nome, mas já ali em baixo chegam ao Erjas, que uns quilómetros depois fica Erges, afluente do Tejo. 

Hoje não há gotas no céu, está sol, por vezes nuvens altas. As nascentes do Côa, a oficial e todas as demais na vizinhança, congelaram. O frio é tal que nalguns vales sombrios o gelo dura todo o dia. Pausa nas nascentes petrificadas, mas mais abaixo os regatos continuam saltitantes.

Amanhecer na serra das Mesas, nas nascentes do Côa, mas com carvalhais da bacia hidrográfica do Águeda em pano de fundo. Foto: Paulo Catry

Andamos uns 15 quilómetros, sobretudo pelo PR3, rota circular da nascente do Côa, serra das Mesas, bem-haja quem a assinalou. Aqui e ali desviamo-nos à procura de outras vistas. Tirando a passagem por Fóios, não se encontra ninguém. Animais de pelo também não (mas há vestígios de corços e de coelhos), até as aves se fazem escassas nestes montes ermos, se calhar fugiram ao frio.

Malcata de um lado, Gata do outro, as serras confundem-se aqui nas Mesas. Ao contrário das bacias hidrográficas, onde começam e acabam as serras não é ciência exata. Muito ao longe a Estrela, a Marofa, Gredos, cinzentas, embaciadas, há sol, mas não é de cristal. 

Ainda não se veem flores praticamente nenhumas. Uma única violeta-amarela no granito e, onde começa o xisto da Malcata, uma ou outra erva-das-sete-sangrias.

Poucas flores nas serranias ainda geladas, esta violeta-amarela Viola langeana foi uma rara exceção. Foto: Paulo Catry

Chegamos a um ponto onde se avista com clareza toda a bacia do Erjas. Sobressaem Elhas (Eljas) e Valverdi du Fresnu (Valverde del Fresno), terras onde o idioma de todos os dias é um dialeto galego-português conhecido por fala de Xálima (há discussão, provavelmente contaminada de nacionalismos de vária índole, sobre se a origem é mais portuguesa ou mais galega – certo é que o que ali se fala não é castelhano). 

Elhas, encavalitada na serra da Gata ao lado das cabeceiras do Erges. Nesta povoação o idioma usado no dia-a-dia é um dialeto galego-português. Foto: Paulo Catry

Matos e pinhais. Carvalhais e soutos despidos de folhas. Restos de castanhas e trilhos de javalis. Ao fim do dia, numa zona alta, voltam as coníferas e às tantas aparece um bando de cruza-bicos. Parecem minúsculos papagaios nalguns modos e trejeitos. Um macho bem vermelho alimenta a companheira esverdeada, regurgitando bico contra bico. Outro toma posições acrobáticas, bem agarrado pelas patas aos ramos fininhos.

Mal comparando, os cruza-bicos são como as pessoas: ligam aos idiomas. Ligam tão a sério que geralmente só conversam com outros cruza-bicos do mesmo dialeto e, claro está, acabam por emparelhar quase só com quem se entendem. Resultado: os cruza-bicos diferenciaram-se em grupos com idiomas distintos, a que correspondem adaptações finas na estrutura do bico e na dieta (especializam-se assim em diferentes tipos de pinhas, como sejam de espécies distintas de pinheiros ou de abetos). O emparelhamento preferencial dentro de cada dialeto levou já a alguma diferenciação genética entre grupos desta espécie a que chamamos cruza-bico-comum Loxia curvirostra. Nalguns casos raros, a diferenciação resultou em espécies já bem demarcadas (como o cruza-bico-escocês L. scotica, por exemplo). 

Cruza-bico no alto da serra das Mesas. Os cruza-bicos Loxia curvirostra dividem-se em populações com dialetos próprios que mantêm um certo grau de isolamento reprodutor entre si. Foto: Paulo Catry

Só na América do Norte são conhecidos 10 dialetos distintos. Na Europa quase outros tantos. Muitos destes grupos de cruza-bicos são migradores e podem encontrar-se nas mesmas áreas geográficas. Mas ainda assim, sem fronteiras físicas, as aves mantêm-se separadas nos seus grupos, ainda mais que os habitantes de Elhas ou Valverdi ao longo dos séculos. 

Côa, Águeda, Erges, três bacias que se tocam na origem, terras de carvalhos, azinheiras, sobreiros, giestas, numa enorme extensão do Douro ao Tejo. Alguns lobos que resistem, águias, cada vez mais abutres, veados, corços. Pouco ruído de motores e praticamente nenhumas eólicas que desfigurem as cumeadas. As noites são escuras. Respira-se.

Lameiro e carvalhos despidos junto a Fóios, no alto Côa. Foto: Paulo Catry


Saiba mais.

Leia aqui outros textos já publicados por Paulo Catry, na série Crónicas Naturais e também publicados em 2017, quando esteve à procura de aves marinhas no meio do Oceano Atlântico.

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