Este sábado, 8 de Maio, comemorou-se o 50º aniversário do Parque Nacional da Peneda-Gerês (PNPG). Miguel Dantas da Gama, membro do Conselho Estratégico do PNPG em representação das organizações não governamentais de ambiente, divulga na Wilder uma reflexão que enviou aos órgãos de gestão da maior área protegida nacional.
1. Uma visão para a globalidade de um território singular
O Parque Nacional da Peneda-Gerês nasceu há cinquenta anos, pela mão de quem conferiu no seu território um conjunto de valores, principalmente naturais, que muito importava proteger e conservar. A aplicação da ideia de parque nacional, inspirada no modelo originário dos Estados Unidos da América (iniciado em 1872 com o P.N. de Yellowstone) implicava a sua adaptação a um território parcialmente habitado por comunidades humanas herdeiras de uma presença antiga, autora de um património cultural que também importava preservar. Quem com ele sonhou, avançou ideias, reuniu esforços para que se convergisse num objetivo que teria que ser desejado pelas populações residentes e por isso, por elas obrigatoriamente assumido. Não esquecidas na ideia original, foi-lhes apontado um papel participativo, fundamental e decisivo para o alcance desse sonho.
Logo à partida reconheceram-se danos que importava enfrentar, debelar, corrigir.
Meio século depois, estamos longe da meta desejada e os passos mais recentes apontam mesmo um afastamento que poderá ser fatal para o projeto desencadeado em maio de 1971. Problemas de fundo mantiveram-se, outros até se agravaram e da motivação inicial desviaram-se os que se foram sucedendo em posições cimeiras na hierarquia do Estado, apesar de terem aceitado a missão de zelar por esses valores naturais e de se comprometerem em fazer cumprir tão aliciante missão. Pouco a pouco, o projeto afastou-se do carácter nacional que à nascença lhe foi atribuído. Perdeu autonomia, perdeu infraestruturas e meios, humanos e materiais, foi-se ignorando o respeito pelo requisito que a sua salvaguarda impõe. Uma estratégia para todo um território, uma visão, com o objetivo de salvaguardar a sua integridade, a conservação do espaço como um todo. Agora, esta ameaça, sempre presente, pode feri-lo de morte.
O Homem tem lugar na Peneda-Gerês. Mas respeitando-o. As comunidades residentes, os cidadãos que dele dependem e que nele poderão sentir condicionamentos ditados pela salvaguarda dos valores, devem ser privilegiados, positivamente discriminados face aos restantes cidadãos, àqueles que o visitam e àqueles que, também provenientes do exterior pretendem explorar e auferir rendimentos de um património que tem que ser respeitado e reconhecido por todos. Pelos presentes e pelos vindouros.
As propostas que a seguir se apresentam têm em consideração:
- A necessidade de agir encarando o Parque Nacional como um todo;
- A usufruição humana, que admitida como um desígnio relevante no conjunto dos objetivos, deve submeter-se a um correto estabelecimento de prioridades. Antes da sua facilitação, impõe-se um prévio restauro e a devida proteção dos valores que se pretendem desfrutar.
- As formas nocivas com que os cidadãos residentes e não residentes foram degradando o meio e os fatores que criam fragilidades e geram danos;
- A debilidade presente dos diversos tipos de habitat e o consequente empobrecimento das populações de flora e fauna selvagens;
- A imposição, a que nos devemos obrigar, de garantir que no território haja espaço para a preservação da natureza, ou seja, espaço em que o ser humano deixe a natureza seguir o seu caminho não explorando quaisquer recursos, para aí evitar a extinção de espécies, aí continuar a aprender como a natureza, livre da interferência humana, evolui e progride. E para que a partir daí possa replicá-la, promovendo a biodiversidade indispensável à vida humana.
Assinalar o 50º aniversário propondo ações com o propósito de avaliar e festejar o respetivo resultado no dia do centenário do Parque Nacional da Peneda-Gerês sustenta-se na convicção de que recuperar a Natureza, pressupõe trabalhar num plano a longo prazo e com objetivos bem definidos, que exige tempo, muito tempo. O reconhecimento da importância destas medidas e o empenho em as concretizar revelar-se-ão evidentes avançando agora, já que a maioria dos seus potenciais promotores e executores sabe, à partida, que não estará presente na data aqui simbolicamente definida para apreciar um expectável sucesso. A começar pelo autor deste plano.
2. Medidas de proteção e de reforço do ordenamento do território
É um facto que só se protege e valoriza aquilo que se conhece. Mas tal principio não pode levar a que a usufruição do património se transforme no principal objetivo ao ponto de colocar os usufruidores literalmente sobre os valores que se devem preservar. A prioridade de investimento deve concentrar-se em ações de proteção e de recuperação do património e não no seu consumo. Há que investir no restauro de habitats, das populações de flora e fauna, não em infraestruturas humanas que contribuem em muitos casos para a degradação do património. Tal obriga a que se reconheça que o estado geral do Parque Nacional é de grande fragilidade, que por mais que encantem as paisagens belas deste singular relevo serrano, há muito onde investir para que nele se possa reconhecer um espaço devidamente preservado.
No Parque Nacional mantêm-se abertas ao trânsito automóvel vias que põem em causa a integridade de espaços sensíveis para a conservação da natureza. Impõe-se o condicionamento do trânsito motorizado de uma forma efetiva (nalgumas delas o condicionamento de acesso está sinalizado mas não é respeitado) nos seguintes acessos:
- Estrada da Geira Romana entre Albergaria e Bouça da Mó (encerramento total e definitivo a veículos motorizados);
- EN-308-1 entre Leonte e Portela do Homem (encerramento nos meses de verão e em alguns períodos festivos, salvaguardando a circulação de pessoas residentes dos aglomerados urbanos mais próximos, de ambos os lados da fronteira);
O condicionamento desta via deve integrar-se num plano mais abrangente e cuidado devido à enorme pressão a que esta importante área do Parque Nacional tem sido submetida. De uma forma intolerável, nos últimos anos.
Nomeadamente entre o início do mês de julho e meados do mês de setembro a circulação de veículos motorizados deve ser interdita entre as Portelas de Leonte e do Homem. Não sendo admissível (nem havendo condições físicas) para criar espaços para aparcamento automóvel (na EN308-1 entre o Gerês e Leonte), a circulação motorizada deverá ser condicionada a partir da Vila do Gerês. Para permitir que os visitantes possam empreender passeios pedestres a partir de Leonte (entrada da Área de Ambiente Natural), uma rede de transporte coletivo/ «mini-bus» asseguraria, ao longo do dia, a ligação entre as Termas e Leonte (e vice-versa). Esta rede poderia também funcionar entre o Gerês e a Pedra Bela, permitindo igualmente limitar o fluxo de veículos motorizados particulares, sempre que se revelasse necessário. Pelas mesmas razões de dificuldade de aparcamento na vila do Gerês, o ponto de partida poderia ser Rio Caldo (entrada do PNPG) e não o Gerês, e próximo desse local de embarque (já fora do PNPG) seria mais fácil e recomendável criar um espaço com maior capacidade de aparcamento (também neste caso as Termas seriam local de paragem para entrada e saída de passageiros, mas o custo do transporte seria o mesmo, desincentivando a deslocação em automóvel particular até à vila, a quem se destinasse a Leonte). Os visitantes pagariam o transporte e adicionalmente receberiam informação adequada sobre a área protegida, durante o percurso de autocarro. Esta proposta pressupõe que seja respeitado um limite de capacidade de carga e opõe-se à ideia de que para resolver os enormes e inadmissíveis congestionamentos de trânsito, a solução é criar condições de acesso alternativos (como a ideia recente da instalação de um teleférico!) que conduziriam a uma pressão humana ainda mais incontrolável. Esta solução traria outros benefícios, nomeadamente económicos, para além dos ambientais. E pressupõe o encerramento da fronteira durante os períodos de condicionamento. Soluções como esta estão a ser implementadas (com sucesso) em áreas protegidas noutros países, nomeadamente em Espanha.
- Estradão de acesso à cascata do Arado e Malhadoura a partir do cruzamento da Fonte do Arado (salvaguardando a circulação de pessoas residentes com atividades autorizadas na área a que a via dá acesso);
- Estradão de acesso ao Porto da Lage a partir do cruzamento com a estrada alcatroada que percorre o PNPG na vertente norte do vale do Cávado e que dá acesso às aldeias (salvaguardando a circulação de pessoas residentes com atividades autorizadas nas áreas em que a via se encontra);
- Estradão de acesso ao cume da serra Amarela – Muro/Louriça- (salvaguardando a circulação de pessoas residentes com atividades autorizadas na área em que a via se encontra e dos responsáveis pela manutenção do posto retransmissor);
- Estradões de acesso ao Planalto de Castro Laboreiro, a partir da Portelinha e de Portos (salvaguardando a circulação de pessoas residentes com atividades autorizadas na área em que as vias se encontram);
- Estradões envolventes do vale do Ramiscal, a partir de Travanca, da Lombadinha, de Lordelo e da Branda dos Homens/Batateiro (salvaguardando a circulação de pessoas residentes com atividades autorizadas na área a que as vias dão acesso);
A Carta de Desporto e Natureza, em tempos objeto de discussão, incluía um conjunto de propostas que colocavam em causa a salvaguarda de valores naturais sensíveis. Nomeadamente a prática da escalada em Pé de Cabril, do «canyoning» no Conho (troço Servas/Pigarreira), afluente do Fafião. Importa saber em que pé ficou este estudo. O que na Peneda-Gerês não escasseia são zonas propícias para banhistas. Neste contexto é de todo intolerável a manutenção de áreas balneares em espaços da maior importância para a conservação dos ecossistemas naturais. Entre elas evidenciam-se as cascatas no rio Homem junto à ponte de acesso à Portela do Homem. O respeito pelo Parque Nacional impõe a proibição definitiva desta realidade aberrante na área de Ambiente Natural (AAN). A estrada para a fronteira levou à fragmentação da sua Área de Proteção Total (APT) e concede um acesso fácil a estas cascatas.
Num momento em que de novo se discute o ordenamento das albufeiras, importa manter livres de qualquer atividade motorizada os espelhos de água das barragens de Paradela e de Vilarinho da Furna, atendendo à sua localização, extremamente sensível. Não faltando alternativas na região, este é uma das questões com que se testa o caráter nacional do PNPG, o respeito pela sua integridade, a visão nacional que o mesmo impõe. Seria inaceitável uma visão concelhia, local, baseada na ideia de que nenhuma autarquia pode ser «prejudicada» se não lhe for concedido o mesmo direito de «aproveitar», como as demais, a albufeira inserida no seu concelho.
A grande debilidade do corpo de vigilância do Parque Nacional é evidente. Impõe-se um reforço urgente de meios humanos, que com a sua atividade devidamente dignificada e dotados de melhores recursos devem ver facilitada a sua insubstituível missão: vigiar, informar, sensibilizar, zelar para que se cumpra a legislação vigente. Missão que deve ser também a de contribuir para a recolha de informação sobre o estado de conservação de habitats, das populações de flora e fauna.
O reforço das importantíssimas equipas de sapadores, em curso, deve prosseguir. Para a estratégia de recuperação do coberto vegetal que adiante se defende, a deteção precoce de fogos é um vetor chave. Para tal importa reforçar a rede de postos fixos de vigilância, nomeadamente em pontos críticos. Os vales do Cabril (serra Amarela) e do Ramiscal e outras manchas florestais da maior importância não estão devidamente acautelados. Nos momentos de grande risco, que com as alterações climáticas podem ocorrer em qualquer época do ano, estes espaços estão quase sempre abandonados à sua sorte. A repetição de desastres ambientais como os verificados nas duas últimas décadas, precisamente no Cabril e no Ramiscal, seria intolerável.
O Ramiscal, em particular, levanta um outro problema, sucessivamente ignorado, e cuja resolução se torna mais problemática a cada dia que passa. Trata-se de uma das áreas mais importantes do Parque Nacional, mas que se encontra numa situação muito fragilizada, uma vez que a sua diminuta dimensão coloca os limites das zonas mais sensíveis praticamente sobre os limites da própria área protegida. Impõe-se pois uma redefinição dos limites da Peneda-Gerês no sentido de salvaguardar outras áreas também valiosas e que devem servir de tampão para os redutos a que a lei conferiu um mais elevado estatuto de proteção. A faixa de território a norte do vale do Ramiscal, até às brandas do vale do Vez (Aveleira, St. António de Poldras e, a sul, até limites mais a poente do Mezio (Vilar de Suente), evidenciam-se.
A caça desportiva no interior do Parque Nacional deve caminhar para a extinção. Até lá impõe-se limitar rapidamente o seu exercício aos praticantes que residem no PNPG, excluindo de imediato todos aqueles que normalmente são identificados como naturais, para quem o território se transformou num espaço de visita, num local de recreio, numa coutada de fim-de-semana, pois nele já não vivem, nem dele depende a sua subsistência. Relativamente à caça importa esclarecer se o que a lei alterou na Revisão do Plano de Ordenamento de 2011 está a ser respeitado. À época existiam zonas de caça associativa que a partir dessa altura ficaram parcialmente dentro da nova Área de Ambiente Natural, alargada nessa revisão. As concessões não podiam ser renovadas uma vez expirados os períodos ainda vigentes nessa data.
A extinção da caça também se impõe para que a pressão do lobo sobre o gado diminua e consequentemente sejam minimizados os conflitos com as comunidades humanas. De uma forma sustentada o lobo tem que encontrar as alternativas de alimento, as alternativas silvestres, as alternativas naturais, que se revelarão ainda mais necessárias com o confinamento do gado que a seguir se defende. E se o gado doméstico não pode continuar a ser uma importante fonte de subsistência para o lobo, porque tal contraria os princípios, porque tal gera um mal-estar prejudicial para todos, a gestão, ou melhor dizendo, a produção de presas silvestres para satisfação de atividades lúdicas humanas é uma atitude frontalmente contrária ao princípio que tem de prevalecer num parque nacional.
Finalmente o importante dossier do pastoreio. O tipo de exploração que hoje se pratica, com gado, essencialmente bovino e equino, pastoreando livre, por norma ao longo de todo o ano, sem qualquer acompanhamento e não respeitando qualquer tipo de ordenamento do território revela-se o fator que mais degrada os valores naturais da área protegida. Os animais são em muitos casos propriedade de não residentes, alguns muito arredados do território, apenas movidos pelo interesse da obtenção dos subsídios que a União Europeia concede. A este tipo de exploração estão associados os fogos, especialmente queimadas, levadas a cabo em espaços cuja vegetação nativa foi sendo destroçada também por esta prática ancestral. Tal como para a caça, impõe-se aqui uma discriminação positiva dos residentes, libertando progressivamente o território da pressão exercida por quem do exterior já não convive diariamente com ele.
O gado pertença dos cidadãos residentes deve ser ordenado, impedindo o seu acesso a zonas onde a preservação dos valores naturais é prioritária, desde logo em toda a Área de Proteção Total. As medidas que se sugerem são expostas mais à frente quando se abordarem as questões que se prendem com a recuperação de habitats. Importa mais uma vez evidenciar que tratamos um parque nacional, não uma reserva de caça desportiva, como em grande parte ele é na prática. Nem um imenso jardim zoológico ou um espaço onde as populações animais, concretamente as designadas cinegéticas têm sido geridas para servir os interesses lúdicos dos humanos.
Privilegiar a preservação da natureza tem custos, gera constrangimentos? Sim. Por isso temos que assumir esses encargos e quem com ela diretamente convive deve ser compensado. Devemos ser todos, a nível nacional. Porque o parque diz-se e quer-se isso mesmo. Nacional.
3. Cidadãos residentes, participantes de um projeto que os deve incluir e discriminar positivamente
A preocupação de melhorar as condições de vida de quem reside no interior do Parque Nacional é uma obrigação, uma questão de justiça mas também um imperativo para que se garanta a sua correta salvaguarda. Se não é aceitável o discurso do politicamente correto de que o que subsiste às comunidades residentes se deve, também não é aceitável que, para elas, não se concedam alguns privilégios pelo facto de coexistirem num território onde, para benefício de todos, foi delimitada uma área protegida e onde por isso se impõem regras que nalguns casos podem ditar limitações, como anteriormente referido.
Ao que já foi defendido importa acrescentar a imperiosa necessidade da concretização de medidas ativas, ações concretas nesse sentido. A exploração pecuária que hoje predomina, em que o gado pasta abandonado sem a companhia e a vigilância de pastores exige um maior ordenamento do território, a criação de espaços em que ele se mantenha confinado. O apoio do Estado tem que ser neste sentido, ajudando na construção de cercados e prevendo medidas de melhoria de pastagens em torno das povoações.
A atribuição de indemnizações por danos causados pelos lobos tem que ser rápida e eficaz e até afetada por um coeficiente que acrescente uma compensação adicional justificada pelo dano afetivo que a perda dos animais implica para os seus donos. A disponibilização de cães de guarda, apontada frequentemente como uma medida de apoio à minimização dos ataques de lobos, apenas resulta junto dos últimos pastores de rebanhos de cabras e ovelhas. Para o gado de maior porte, quase sempre abandonado como já se evidenciou, os cães-pastores não fazem qualquer sentido.
A propósito do lobo há também que lamentar o retrocesso legal verificado. A legislação recentemente revista descriminalizou a perseguição humana contra a espécie, que continua ativa com a eliminação cruel de lobos, barbaramente aprisionados em laços ilegais, abatidos a tiro e envenenados, com a agravante de prever agora que os proprietários de gado apenas sejam ressarcidos pelos danos atribuídos aos lobos se confinarem os seus animais e os acompanharem nas pastagens livres, o que, como já foi dito, com o actual perfil das explorações pecuárias é uma medida que se vira frontalmente contra o lobo. Aos detentores de gado é preferível pagar multas ridículas do que gastar verbas dispendiosas em estruturas (abandonadas) de confinamento. Com esta revisão da lei o Estado demonstrou estar apenas preocupado em reduzir substancialmente o montante das indemnizações, agravando a ira (e a perseguição) dos criadores de gado contra a espécie selvagem que a lei demagogicamente diz ser protegida.
As enormes verbas disponíveis, nomeadamente as provenientes da Europa Comunitária, muitas das quais se diz serem destinadas ao meio ambiente, têm que ser canalizadas, prioritariamente, para estas ações e não para infraestruturas lúdicas ou pseudoculturais com que os agentes locais pretendem trazer mais e mais gente ao território que em muitos casos apenas «retribui» com o lixo que deixa na serra. A população residente requer a prestação de serviços nas áreas da saúde e da educação. Quanto mais importante seria para os residentes, maioritariamente pessoas idosas, dispor da visita periódica de uma unidade médica móvel, de um serviço regular de transporte que das aldeias os levassem à sede do concelho para tratar dos vários assuntos que em muitos casos os obrigam a alugar transportes privados caros? São medidas que os próprios residentes devem reclamar como prioritárias, contrariando as modas que vão surgindo como passadiços e baloiços concentradores de pressão humana nos locais em que são executados, ou monumentos a vacas e «parques biológicos» em que se querem mostrar em cativeiro espécies cuja observação deveria ser motivada em saídas de campo devidamente acompanhadas para as procurar no seu estado selvagem, razão suplementar para que os investimentos sejam canalizados não para estes jardins zoológicos inexplicáveis em entradas de uma área natural, mas para os espaços serranos envolventes das Portas do Parque que tanto carecem de ações de recuperação do coberto vegetal, da sua flora e fauna autóctones.
Restaurar devidamente o património (natural, cultural, histórico, arquitetónico) permite admitir que a sua usufruição seja de algum modo paga por quem visita o território. Concretamente alguns sítios (naturais, históricos). E uma rede de prestação de serviços, prioritariamente assegurados pelos residentes, em parceria com o Parque, só se justifica se no terreno houver «conteúdos» que valham a pena merecer uma atenção dedicada. Um serviço de guias em caminhadas devidamente informadas, a criação de documentação atualizada sobre o que apreciar no que se refere aos valores patrimoniais que o PNPG encerra são bens e serviços que só fazem sentido e só são sustentáveis se no território os visitantes mais atentos, conhecedores e exigentes, especialmente aqueles que têm poder de compra, os que tendem a melhor respeitar a natureza, encontrarem um património valorizado, conservado, distinto do que, degradado, abunda um pouco por todo o país. Um património de que todos podem e devem beneficiar.
Por todas estas importantes razões, impõem-se ações de recuperação e de valorização que a seguir se apresentam.
4. Recuperação da vida selvagem, da flora e fauna
São ações ambiciosas, motivações para a mudança que o único parque nacional português reclama desde o dia em que foi criado, já lá vai meio século.
Tal como inicialmente referido, em parte do território do Parque Nacional têm que ser garantidas parcelas onde a preservação da natureza não seja apenas uma prioridade mas sim o objetivo único. Tal está previsto no zonamento aprovado no Plano de Ordenamento e designa-se Área de Proteção Total. Inclui os vales do Cabril e do Ramiscal que urgentemente devem ficar livres de qualquer intervenção humana e passarem para a alçada do Estado com o mesmo estatuto da Mata de Albergaria (nem de uma expropriação se tratará, o que em todo o caso seria mais do que justificável). Ambos requerem a interdição do pastoreio o que neste momento só se garante com a vedação total destes redutos, numa intervenção, que devidamente concertada com os pastores impeça a entrada de gado bovino e equino mas salvaguarde a livre circulação de fauna selvagem de maior porte, como lobos, corços, veados e javalis.
A recuperação do coberto vegetal e a eliminação das espécies exóticas infestantes é a ação que merece destaque no conjunto das intervenções propostas.
A ligar as várias parcelas de maior interesse natural (AAN, APT em particular), sugere-se a criação de um corredor de floresta nativa, uma mancha mais ou menos contínua de bosque autóctone que atravesse todo o território. Uma «faixa» de arvoredo e demais vegetação característica dos carvalhais naturais com o objetivo maior de ligar, recuperar, reforçar núcleos residuais onde sobrevivem populações fragilizadas, algumas à beira da extinção, de fauna e de flora endémica da região onde o PNPG se insere. Uma intervenção baseada na recolha de sementes originárias do melhor que resta. O estabelecimento deste corredor de floresta nativa deve incluir o reforço e a expansão de espécies seriamente ameaçadas e cuja presença é fundamental para a recuperação dos vários tipos de habitat que importa restaurar.
Neste contexto, trabalhar com as espécies arbóreas é a base de uma recuperação generalizada dos espaços. Partindo do arvoredo, recupera-se muita outra vegetação associada. O Parque Nacional possui 33 espécies nativas de porte arbóreo. Para algumas delas a Peneda-Gerês é importante por constituir o único ou o principal local de ocorrência ou ainda por ser parcela importante de uma distribuição muito confinada em Portugal. São os casos do zimbro-rasteiro (Juniperus communis), do pinheiro-silvestre autóctone, (Pinus sylvestris) do teixo (Taxus baccata), da nespereira-das-rochas (Amelanchier ovalis), da faia (Fagus sylvatica), do azereiro (Prunos lusitanica), da pereira-brava (Pyrus communis), de duas espécies de salgueiros (Salix caprea e Salix repens), de três espécies de sorveiras, a sorveira-branca, o mostajeiro e o cornogodinho (respectivamente Sorbus aria, Sorbus torminalis e Sorbus aucuparia) e do ulmeiro (Ulmus glabra). Destas essências autóctones importa realçar que, também na Peneda-Gerês, são raros os dois salgueiros, as três sorveiras e o ulmeiro.
A elas se devem juntar quatro outras espécies que não sendo raras a nível nacional – atendendo a que têm uma distribuição que se alarga para fora do PNPG ou se situa em núcleos diferenciados – o são na Peneda-Gerês. A ameixoeira-brava (Prunos spinosa), a aveleira (Corylus avelana), a macieira-brava (Malus sylvestris) e a reliquial azinheira (Quercus rotundifolia). Estão assim encontradas as espécies que deveriam merecer uma atenção prioritária. Em dois escalões. As que são quase exclusivas do PNPG e ao mesmo tempo (nele) raras. E as que olhando o Parque Nacional isoladamente são também muito escassas.
Excluindo o caso particular do pinheiro-silvestre (do qual foram elaborados estudos que relevam a importância extrema dos núcleos residuais existentes no interior da serra do Gerês), tratam-se de espécies que não estão ameaçadas num contexto internacional mas a sua ocorrência escassa ou ameaçada no Parque Nacional empobrece as manchas de bosque autóctone reduzindo ou inviabilizando a ocorrência de outras plantas e animais e o regresso das que por esta e outras razões se extinguiram. A reprodução destas espécies arbóreas nativas, em piores situações que as normalmente citadas, como o azevinho, o teixo, ou o azereiro, é pois muito importante para o reforço das respetivas populações.
E se a disseminação e a ampliação dos resquícios de floresta é importante, evitar que eles se percam exige que de imediato se protejam pequenos bosquetes de grandes exemplares arbóreos, o que resta das árvores antigas, atualmente isoladas pelo fogo, ameaçadas pelos matos e pelas queimadas associadas que foram dizimando tudo o que de importante com elas convivia, principalmente manta morta que as chamas devastadoramente «limpam». Espalhadas um pouco por todo o território do Parque Nacional devem beneficiar de ações cirúrgicas de proteção, da construção de pequenos cercados que as isolem da pressão do gado e promovam a regeneração natural. Bosquetes em que se destacam diminutas manchas de azevinhos centenários e os pinheiros-silvestres primitivos sobreviventes que o Parque Nacional finalmente decidiu estudar e começar a disseminar. Mas disseminar estas relíquias sem que paralelamente tudo se faça para evitar a perda do que do passado sobreviveu até aos nossos dias, não faz sentido.
Ramificações deste grande corredor de floresta autóctone para áreas rurais envolventes das aldeias devem ser fomentados para benefício futuro das populações residentes criando um recurso que, para ficar disponível, tem que ser semeado o mais depressa possível e ser merecedor de um trabalho desenvolvido com empenho e persistência porque é moroso e leva tempo. Neste contexto importa insistir na reconversão progressiva das manchas mono-culturais de pinheiro-bravo, como defendia Lagrifa Mendes no seu projeto inicial, cuja apresentação antecedeu a criação da Peneda- Gerês.
Esta intervenção prioritária sobre o coberto vegetal requer a reativação dos antigos viveiros florestais e deve ser acompanhado de um plano igualmente tenaz, insistente e duradouro para irradicação das manchas de espécies infestantes que destroem o Parque de uma forma avassaladora.
Nesta proposta de plano de ação para os próximos cinquenta anos de vida do Parque Nacional importa agora aludir ao novo modelo de cogestão, recentemente implementado na Peneda-Gerês e com o qual a Tutela do Ambiente transferiu para uma equipa alargada, presidida por um dos autarcas, a gestão da área protegida nomeadamente o estabelecimento de um plano de ação e o consequente estabelecimento das prioridades de investimento. Esta mudança é profundamente contrária aos interesses conservacionistas de um espaço classificado que mais uma vez vê desrespeitado o estatuto nacional que o devia diferenciar das restantes áreas protegidas. Depois de ter perdido um diretor autónomo, depois de ter perdido também autonomia financeira, de recursos humanos e materiais, esta alteração de gestão poderá comprometer definitivamente o projeto inicial, inspirador, que levou à criação do único parque nacional português. Acresce o facto de recente portaria definir como critérios de avaliação do bom desempenho desta comissão de cogestão, não a evolução do estado de conservação do património natural, mas parâmetros que mais uma vez insistem, na melhoria das condições de usufruição, em chamar mais gente ao território, pressupondo que tudo está bem e ignorando que os valores naturais não aguentam uma pressão humana crescente num território encarado como mais uma região de turismo disfarçada pela chancela de área protegida.
Por ser uma alteração legal de difícil reversão, importa dizer que chegou a hora do poder autárquico ser coerente com o discurso crítico que ao longo destas cinco décadas assumiu contra a autoridade nacional do ambiente (ICNF e organismos que o antecederam) tudo fazendo para promover a grande limpeza que se impõe no território do Parque Nacional. Principalmente o município de Terras de Bouro, mas também o de Ponte da Barca, devem encabeçar a luta para a erradicação das acácias, das mimosas em particular, dos núcleos crescentes de hakia-picante (principalmente na serra Amarela) e de outras infestantes, substituindo-as por arvoredo autóctone e não mais pelas monoculturas de pinheiro-bravo que tanto criticaram também ao Estado Novo. Uma verdadeira reflorestação (não uma simples arborização) com espécies nativas, também benéfica para a economia das comunidades residentes. Um investimento que traga madeiras nobres, frutos e outros produtos comercializáveis, que potencie um turismo de maior qualidade, maiores e melhores condições para travar o flagelo dos incêndios, em suma, melhor qualidade de vida. Considerando e reconhecendo os muitos esforços já despendidos nesse sentido, as extremamente onerosas intervenções, de vários tipos e os intermitentes e fracos resultados obtidos, importa insistir na defesa de uma intervenção, necessariamente prolongada no tempo, que inicialmente incida nos núcleos mais importantes a salvar. Começando em cada um deles por criar um anel de contenção que circunscreva as manchas a recuperar, limpando e reflorestando, com um acompanhamento incessante nos primeiros anos, nos limites exteriores das manchas afetadas de forma a controlar e impedir a expansão e paralelamente a recuperar, reconvertendo. A partir daí ir progressivamente entrando na mancha, sempre com o mesmo perfil de atuação, até que o coberto refeito naturalmente impeça a sobrevivência das espécies exóticas. Tal implica uma incidência, prioritária, na aplicação dos recursos financeiros.
Trabalhar com espécies de fauna selvagem é motivador. Fazer regressar espécies extintas é particularmente aliciante.
A execução da maioria das ações anteriormente defendidas não deixará de dar frutos na recuperação de populações de animais selvagens, principalmente de espécies de aves de montanha para as quais este território (nomeadamente os dois planaltos extremos de Laboreiro e da Mourela) constitui o limite sul da sua área de reprodução no extremo noroeste da Península Ibérica como o cartaxo-nortenho (Saxicola rubetra), a escrevedeira-amarela (Emberiza citrinella), o tartaranhão-azulado (Circus cyaneus), o picanço-de-dorso-ruivo (Lanius collurio), a narceja-comum (Gallinago gallinago). Medidas que poderão também facilitar visitas mais assíduas de preciosidades que quase deixaram de ocorrer na Peneda-Gerês como o melro-de-peito-branco (Turdus torquatus), o pardal-alpino (Montifringilla nivalis) e a trepadeira-dos-muros (Tichodroma muraria). E até o regresso de outras há muito extintas como é o caso do peto-preto (Dryocopus martius). A sobrevivência de répteis e anfíbios e de uma infinidade de espécies de invertebrados também requer estas mesmas ações, uma vez que se encontram particularmente expostas aos efeitos das alterações climáticas que estas intervenções deverão mitigar.
Mas há espécies que requerem ações dedicadas. Entre elas ressalta a importância da prossecução das medidas que o Parque Nacional tem levado a cabo – apoiando os técnicos galegos do vizinho Parque do Xurés – com o objetivo de restabelecer uma população de águia-real (Aquila chrysaetos), através da libertação de mais indivíduos e a manutenção do alimentador de aves necrófagas presentemente em funcionamento. Uma população consistente da maior das nossas águias promove uma interação saudável com a crescente população de cabra-montês. Importa fazer notar, que a recuperação das populações de presas e a salvaguarda dos locais de reprodução, deveras importantes quando em causa está um superpredador tão exigente como este, estão fortemente condicionadas pela prática da caça e pela ausência do ordenamento do pastoreio e do turismo, já abordados.
São questões que condicionam também o regresso ao território de outras espécies que por estas e outras causas se extinguiram. É neste contexto que se insiste na reintrodução oportuna da charrela (Perdix perdix).
Depois da cabra-montês (Capra pyrenaica) um outro símbolo icónico da fauna ibérica pode e deve voltar a povoar as serranias da Peneda-Gerês. Avistar de novo o lince-ibérico (Linx pardina) é uma realidade cada vez mais próxima. Não apenas devido ao muito que já foi executado no programa de criação em cativeiro e de libertação a partir dos dois centros ibéricos criados para o efeito mas também pela manifestação de interesse de regiões autonómicas espanholas vizinhas em avançar com medidas ativas no sentido de expandir a área de ocorrência deste felino e de criar novos núcleos. A atitude, de louvar, que Castela-la-Mancha já tinha assumido a propósito da nova lei de proteção do lobo em Espanha, confirma-se em relação ao lince. O grau de acolhimento do «tigre», do «lobo-cerval» na Peneda-Gerês, depende da disponibilidade de habitat e da manutenção de uma população de coelho-bravo estável, o que nas condições atuais de forte pressão da caça e do fogo não está garantido.
O quebra-ossos (Gypaetus barbatus) está na mesma situação. A expansão da distribuição da espécie na Península Ibérica não cessa de crescer devido às ações de repovoamento em várias regiões espanholas, nomeadamente na bem próxima cordilheira cantábrica. Portugal tem que convergir, associar-se ao crescente movimento de rewilding na Europa com medidas ativas assumidas pelo próprio Estado. E o rewilding sugere uma outra espécie cuja evolução na Península Ibérica tem gerado notícias empolgantes. A recente visita de um urso-pardo (Ursus arctos) a Trás-os-Montes, veio confirmar a possibilidade dos territórios fronteiriços de Portugal poderem ser limites (mesmo que intermitentes) de uma área de ocorrência da espécie que se alarga e que se aproxima do nosso país. Para esta espécie há muito trabalho a desenvolver. Recuperação de habitat (nomeadamente plantação de árvores frutícolas como a cerejeira-brava e a macieira-brava) e ordenamento do território, campanhas de informação e sensibilização junto das comunidades residentes que à imagem do que aconteceu na vertente ocidental da cordilheira cantábrica, poderão vir a reconhecer um dia o quanto beneficiarão com o regresso deste emblemático plantígrado.
A grandeza, a ambição do plano de intervenção aqui proposto reclama o retorno da autonomia da gestão do PNPG, a criação no território de uma forte e polivalente equipa técnica a liderar um Centro de Estudos de Montanha.
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O Parque Nacional da Peneda-Gerês anda frequentemente nas bocas do mundo, mas raramente para sobre ele se tratarem as questões com cujo debate se reconheceria estarmos perante um verdadeiro parque nacional, a mais importante das áreas protegidas da rede nacional, que carece de projetos de preservação da natureza ao nível do que de melhor se concretiza um pouco por toda esta Europa, da qual almejamos aproximarmo-nos, em termos económicos, sociais e culturais. Convivemos com uma realidade triste, desmotivadora, num território que contrariamente ao que revela o comportamento da maioria dos que dele usufruem, se encontra muito degradado e desprezado. Não bastam títulos e estatutos. Não bastam investimentos financeiros avultados, se o seu consumo contribui para torná-lo ainda mais frágil e pressionado. O erro maior de medir o valor do Parque Nacional pela quantidade (crescente) de visitantes que a ele acorrem, está a ser a causa da sua há muito anunciada perda. O que devia ser um projeto de preservação e conservação da natureza de valor nacional e internacional transformou-se numa simples região turística em que governantes nacionais e autarcas continuam a insistir e de cuja marca se aproveitam.
Que o dia 8 de maio de 20121, simbolicamente importante para o Parque Nacional da Peneda-Gerês, seja o ponto de partida de uma viragem. Que neste dia em que ele completa as suas cinco primeiras décadas de existência se projetem as próximas cinco para que nessa data, olhando para trás, se possa dizer que o sonho se concretizou, que nestas serranias do noroeste ibérico subsiste um reduto de natureza exemplar, o melhor contributo dos portugueses para a biodiversidade do planeta que a todos cabe assumir.
O Parque Nacional da Peneda-Gerês foi criado há 50 anos e as celebrações decorrem até 8 de Maio de 2021. Esta carta aberta encerra uma série de crónicas nas quais Miguel Dantas da Gama, profundo conhecedor desta área protegida, aproximou-nos deste recanto único no nosso país.
Hoje, este Parque Nacional abrange os concelhos de Arcos de Valdevez, Melgaço, Montalegre, Ponte da Barca e Terras de Bouro. As matas do Ramiscal, de Albergaria, do Cabril, todo o vale superior do rio Homem e a própria serra do Gerês são um tipo de paisagem que dificilmente encontra em Portugal algo de comparável.