À espera dos estorninhos no Cais do Sodré

23.02.2015

A chegada de centenas, ou milhares, de estorninhos aos seus dormitórios ao entardecer é um dos espectáculos da natureza no Inverno. Num final de tarde de Fevereiro fomos esperá-los ao Cais do Sodré, em Lisboa. José Frade, naturalista apaixonado por aves, fez-nos companhia.

 

Pouco passava das 17h00 e já olhávamos para o Tejo à espera de os ver atravessar o rio e chegar lá das bandas das Lezírias. A tarde estava fria e pesadas nuvens cinzentas iam carregando o céu. Depois de passarem o dia a alimentar-se nos campos do outro lado do Tejo, os estorninhos regressam a Lisboa, ao Cais do Sodré, ao entardecer. Mas será que este local continua a ser um dormitório para estas aves?

Sentámo-nos no banco de uma paragem de autocarro à espera. Nós com o caderno de argolas assente nos joelhos e caneta Bic na mão com luvas; José Frade com a câmara fotográfica no colo.

“Em Portugal temos o estorninho-preto (Sturnus unicolor), que vive cá todo o ano. Depois, no Outono/Inverno chega o estorninho-malhado, aquele que vem aqui dormir”, disse José Frade, mecânico de automóveis com 48 anos e que já viu quase todas as espécies de aves que ocorrem em Portugal. Só este ano já observou 142 espécies.

Os estorninhos-malhados (Sturnus vulgaris) ocorrem sobretudo de Outubro a Fevereiro, vindos, nomeadamente, da Europa Central e de Leste e da Escandinávia. Ao fim da tarde reúnem-se para passar a noite em dormitórios que podem albergar centenas ou mesmo milhares de aves. Em Dezembro de 1960, na região de Penha Garcia, em Idanha-a-Nova, foi estimada a presença de 100.000 estorninhos num único dormitório, segundo o livro “Aves de Portugal. Ornitologia do território continental” (2010).

“Os estorninhos passam o dia nos campos das Lezírias a alimentar-se de insectos, frutos e sementes. Ao final da tarde partem para as cidades onde se juntam em bandos para dormir em árvores de grande porte”, explicou José Frade.

Fotografia: Joana Bourgard
Fotografia: Joana Bourgard

 

Começam a cair as primeiras gotas de chuva quando perguntamos por que é que os estorninhos escolhem as cidades para dormir. “Estas aves dormem em árvores grandes, que não abundam nas Lezírias. Além disso, nos campos há mais aves de rapina, predadores dos estorninhos. Sentem-se mais seguros nas cidades.”

Olhámos mais uma vez para o céu por cima do Tejo. Estavam demorados, os estorninhos. À nossa frente, pombos empoleiravam-se nos ramos da árvore que se sacudia sem grande nexo empurrada pelo vento forte. Os pardais que antes debicavam as pedras da calçada junto aos nossos pés na paragem do autocarro, tinham desaparecido.

A paixão pelas aves não nasceu com José Frade. Foi a fotografia que o fez olhar para os pássaros. “Sempre gostei de fotografar. Mas, a certa altura, apeteceu-me fotografar alguma coisa diferente. E então pensei nas aves. Mas quando comecei só conhecia os pombos, os pardais e os milhafres. Os primeiros meses foram frustrantes e estive para desistir”, lembrou. “Mas dediquei-me, procurei saber mais e não tive vergonha de perguntar coisas a quem já sabia.” Hoje conhece peritos e fotógrafos como ele de Norte a Sul do país. “Antes de ir a algum lugar, estudo bem o que posso ver, pergunto a quem lá vive os melhores locais, as melhores horas. Faço o meu trabalho de casa”.

A chuva engrossava e a noite espalhava-se pelo Cais do Sodré. Enquanto falávamos de aves, deitávamos o olho lá para a banda das Lezírias. Mas nada de bandos de estorninhos. Será que mudaram de ideias por causa da chuva? Teriam escolhido outras árvores para passar a noite?

José Frade já não vinha ao Cais do Sodré ver aves há anos. “Sei que aqui era um dos dormitórios dos estorninhos em Lisboa, mas já não venho cá há muito tempo. Aproveitei hoje para vir cá ver”.

Este ornitólogo, que traz sempre consigo a câmara fotográfica e que aproveita qualquer hora de almoço para ir espreitar o rio a ver as aves que por lá passam, é um dos dois responsáveis pelo grupo do Facebook “Aves de Portugal Continental”, hoje com mais de 8300 membros. “Quando começámos há três anos não estava à espera que crescesse como cresceu. Há muita gente que não sabe de aves e vai lá aprender”. Aconselha a quem quiser aprender a identificar aves para ver os milhares de fotografias que são publicadas naquela página do Facebook. E com orgulho salientou que o grupo é utilizado por escolas primárias. Mas há uma história que não esquece. “Um dia, uma senhora disse-me que foi graças a uma fotografia que eu tirei a uma andorinha que ela soube que as andorinhas não são pretas, mas sim azuis. É este tipo de coisas que me dá a motivação para não desistir”.

Passadas quase duas horas, os estorninhos não tinham aparecido. Levantamo-nos do banco da paragem de autocarro no Cais do Sodré e prometemos andar atentos, de olhos postos nas árvores à beira rio até ao fim do Inverno.

[divider type=”thin”]Agora é a sua vez.

Se vir estorninhos ao final do dia, diga-nos onde para [email protected].

Helena Geraldes

Sou jornalista de Natureza na revista Wilder. Escrevo sobre Ambiente e Biodiversidade desde 1998 e trabalhei nas redacções da revista Fórum Ambiente e do jornal PÚBLICO. Neste último estive 13 anos à frente do site de Ambiente deste diário, o Ecosfera. Em 2015 lancei a Wilder, com as minhas colegas jornalistas Inês Sequeira e Joana Bourgard, para dar voz a quem se dedica a proteger ou a estudar a natureza mas também às espécies raras, ameaçadas ou àquelas de que (quase) ninguém fala. Na verdade, isso é algo que quero fazer desde que ainda em criança vi um documentário de vida selvagem que passava aos domingos na televisão e que me fez decidir o rumo que queria seguir. Já lá vão uns anos, portanto. Desde então tenho-me dedicado a escrever sobre linces, morcegos, abutres, peixes mas também sobre conservacionistas e cidadãos apaixonados pela natureza, que querem fazer parte de uma comunidade. Trabalho todos os dias para que a Wilder seja esse lugar no mundo.

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