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Foto: Zeynel Cebeci/Wiki Commons

O Projecto Rolieiro está a recuperar estas aves azuis no Alentejo. E a conhecê-las melhor

25.07.2025

Estava abril a começar, Inês e Teresa Catry mudaram de casa, de Lisboa para o Interior. Um colega, que sabe que Inês pouco liga às redes sociais, tinha partilhado com ela uma fotografia valiosa: uma ave azul e acastanhada acabada de fotografar num município do Baixo Alentejo, com um aparelho de geolocalização agarrado ao dorso. “Temos de ir rápido rápido para Castro Verde!”, disse Inês à irmã gémea, que também está ligada ao Projecto Rolieiro – Conservação do Rolieiro em Portugal. Fizeram as malas, pegaram no carro e partiram para a vila alentejana, a uma hora e meia de caminho.

Todos os anos, os rolieiros (Coracias garrulus) chegam a Castro Verde para nidificar e cuidar das crias, até regressarem a África entre o final de julho e o início de agosto. E todos os anos, as duas investigadoras do CE3C – Centro de Ecologia, Evolução e Alterações Ambientais, da Universidade de Lisboa, rumam a esta localidade para trabalharem na conservação e investigação sobre estas aves, que em Portugal estão Criticamente em Perigo e a nível europeu não estão muito melhor, com o estatuto Vulnerável.

Desde 2023, o trabalho com estas aves migradoras coloridas acontece ao abrigo do Projecto Rolieiro, coordenado pela Estação Biológica de Mértola e financiado pela associação portuguesa Viridia – Conservation in Action. Até agora, a equipa instalou quase 160 caixas-ninho, tanto na zona de proteção especial (ZPE) de Castro Verde como noutras localidades próximas, com o objetivo de criar habitat para uma espécie que antigamente fazia ninho em cavidades de árvores antigas, como sobreiros, explica Teresa Catry. “Como por cá esse habitat foi desaparecendo, começaram a procurar outros habitats e começámos também a necessitar de criar mais espaços para nidificarem”, afirma esta investigadora.

Um pormenor do carro que a equipa do Projecto Rolieiro costuma conduzir para monitorizar os ninhos. Foto: Wilder

Os novos ninhos artificiais, muitos deles instalados em postes telefónicos e de eletricidade, vieram juntar-se aos ninhos que foram sendo construídos pelos rolieiros em cavidades de montes alentejanos abandonados – e cada vez mais arruinados – e a algumas paredes de nidificação construídas há 20 anos para os francelhos (Falco naumanni), outra espécie ameaçada na região. De facto, terá sido um projeto dedicado à recuperação destas aves de rapina, realizado entre 2002 e 2006, que trouxe também os rolieiros para a ZPE desta vila alentejana – ou “pássaros azuis”, como são ainda hoje apelidados pelos locais. Terão chegado aqui vindos de outras áreas onde eram uma presença comum, atraídos pelos novos locais para nidificar e pela quantidade de gafanhotos e outros insetos de que se alimentam.

Uma das paredes de nidificação construídas há 20 anos na ZPE de Castro Verde, num projeto dedicado aos francelhos, e hoje ocupadas por várias espécies, incluindo rolieiros. Foto: Wilder

Duas décadas mais tarde, as novas caixas-ninho são uma estratégia para que os rolieiros se conservem em Castro Verde. De facto, ajudam esta e muitas outras espécies de aves. Com uma escada apoiada no tejadilho do carro, Teresa e Inês Catry conduzem de um sítio para outro a monitorizar as crias. Sempre que necessário, abrem cancelas ou passam por cima de vedações que barram a passagem para chegarem a velhos montes arruinados, paredes de nidificação e outros locais. Quem encontrar as duas irmãs não protesta, já as conhece e sabe o que andam a fazer.

Nesta manhã de final de junho, com o calor a apertar, avançamos entre ervas douradas e cardos já castanhos, sinal de que o verão já se instalou. “A planície alentejana passa de tudo verde a tudo seco num ápice”, comenta Inês. “Nesta altura é o deserto, já estão a ceifar e só fica o restolho.”

Anilhas e GPS, aliados na investigação

Este ano trouxe uma boa notícia: 27 ninhos artificiais foram ocupados por rolieiros, mais 10 que em 2024. Quase todas as crias costumam ser anilhadas antes de abandonarem os ninhos, o que já acontece desde 2012 ao abrigo do atual projeto e de outros anteriores.

Cada anilha junta números e letras em combinações sempre diferentes, o que faz com que ao ser avistada ou fotografada, funcione como uma espécie de “cartão de cidadão” para essa ave. Graças à anilhagem a equipa registou, por exemplo, a fêmea mais velha da espécie em termos europeus, com 12 ou 13 anos de idade. Têm vindo também a perceber que afinal os rolieiros não acasalam com o mesmo parceiro para a vida toda nem são fiéis ano após ano, como acontece com algumas espécies. 

Um rolieiro em voo, no Alentejo. Foto: Norberto Esteves/Wiki Commons

Mas a investigação sobre estas migradoras não recorre apenas a anilhas. Desde 2023, o projeto colocou dispositivos GPS em 10 rolieiros, para saber mais sobre rotas de migração e comportamentos nas viagens entre Portugal e os destinos em solo africano. A partir da informação que até agora recolheram de dois desses aparelhos e também de geolocalizadores (GLS) usados em anos anteriores, foi possível perceber, por exemplo, que estas viagens de migração podem demorar quatro ou cinco meses até aos locais de invernada.

Na maioria das vezes, os rolieiros que procriam no Alentejo passam os meses mais frios no sul de Angola, norte da Namíbia e Botsuana, mas até chegarem fazem pausas para descansar e sobretudo comer. Conhecidas como ‘stopovers’ na gíria de quem estuda aves migradoras, no caso destes rolieiros sucedem “em áreas de habitat de transição entre o deserto e as savanas e florestas tropicais, no Sahel (no sul do Niger, Mali e Mauritânia), mas também em áreas já verdadeiramente tropicais, com floresta pouco densa, já a sul do Sahel (Camarões, Guiné, Costa do Marfim).” Nessas áreas de pausa, permanecem vários meses.

Já o regresso a Portugal, em contrapartida, é bastante mais rápido: sabe-se hoje que os rolieiros começam a regressar em fevereiro e chegam em abril, prontos para uma nova época.

Vacas em vez de ovelhas. E perguntas (ainda) sem resposta

Em 2024, um censo nacional mostrou que os números de rolieiros têm vindo a crescer na ZPE de Castro Verde, auxiliados pela instalação de mais caixas-ninho e pelo tipo de agricultura que ali se pratica – mais tradicional e com terrenos em rotação e em pousio, longe das monoculturas intensivas de outros locais do Alentejo. Outra ajuda importante, no caso destas aves, é que o plano de desenvolvimento rural do município não permite florestações.

Feitas as contas, haveria 72 a 82 casais de rolieiros no ano passado, em Portugal, dos quais 69 a 79 na ZPE de Castro Verde – mais do que os 63 a 65 casais contados em 2017 nesta área da Rede Natura. No entanto, “a nível nacional a população tem vindo a diminuir, quer em número, quer em área de distribuição”, avisa Inês Catry. Por exemplo, na ZPE de Vila Fernando, no concelho de Elvas, onde em 2021 foram observados oito pares reprodutores, em 2024 só foi encontrado um.

Mesmo na zona de Castro Verde, onde está a ZPE mais importante para a conservação das aves estepárias a nível nacional, há alterações no uso do solo que colocam a equipa em alerta. “O tradicional sistema de cultivo de cereal extensivo em rotação com pousios, pastoreados por ovelhas, tem estado a sofrer uma alteração nos últimos anos. As ovelhas têm sido substituídas por vacas, que obrigam a que haja cultivo de fenos para as alimentar, mas o feno é cortado muito cedo, muitas vezes ainda em março ou abril, impactando diretamente todas as aves que criam no chão”, descreve Inês Catry. Esse é por exemplo o caso do tartaranhão-caçador. 

No final de junho, a paisagem nas planícies de Castro Verde é dominada por restolho e cardos secos. Foto: Wilder

Esta mudança parece afetar também, de forma indireta, a disponibilidade de gafanhotos e de alimentos necessários para os rolieiros e outras aves estepárias que dependem das planícies cerealíferas – outro tema que é necessário estudar. “Depois da ceifa, e sem vegetação, o abrigo para invertebrados e outras presas é muito reduzido”, indica a investigadora da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, que acrescenta outra questão. Existem diferenças entre o pastoreio por ovelhas e vacas cujos efeitos é importante perceber, como por exemplo a forma como ambas se alimentam e cortam a erva, ou o nível de pisoteamento do solo por umas e outras. “Não são conhecidos os impactos desta mudança para as presas e as aves que delas se alimentam.” 

As respostas a essas perguntas, e também quanto ao impacto que esta mudança estará a ter na reprodução das aves estepárias, podem ajudar a perceber se é necessário adaptar as medidas de conservação em curso, sublinha. Por exemplo, no que respeita às práticas agrícolas que recebem dinheiro das medidas agro-ambientais, no âmbito da Política Agrícola Comum.  

Inês Catry prepara-se para inspecionar o interior de uma das caixas-ninho do projeto, com crias que vão ser anilhadas. Foto: Wilder

Outra questão importante está relacionada com os impactos das alterações climáticas para os rolieiros e outras aves do mesmo grupo. “Apesar de termos já feito algum trabalho nesta área, há ainda muitas questões para explorar.” É de esperar que temperaturas acima dos 40ºC e ondas de calor e secas prolongadas se tornem mais comuns. Como é que as aves vão reagir a estas mudanças? E como é que conseguem lidar com o stress provocado por temperaturas mais altas? “Saber isso será muito importante para avaliarmos a vulnerabilidade destas espécies face aos cenários climáticos futuros”, nota a investigadora, que soma a estas perguntas a busca por potenciais refúgios climáticos, como árvores, a que essas espécies poderão recorrer em caso de calor. 

E as caixas-ninho?

Entretanto, no âmbito do Projeto Rolieiro, foram instaladas caixas-ninho feitas de novos materiais, que parecem estar mais preparadas para os desafios das alterações climáticas do que as antigas, que eram de madeira. “Sabemos que no interior dos ninhos as temperaturas podem atingir valores muito altos – este ano foram altíssimas – e isso pode comprometer a sobrevivência das crias, por isso vamos avaliar os resultados.”

As jovens aves que entretanto sobreviverem ao calor, se a migração correr bem, deverão estar de regresso em abril do próximo ano – dois meses depois da data prevista para a conclusão do atual projeto. A equipa espera conseguir novos financiamentos para continuar o trabalho de monitorização da espécie e dos ninhos artificiais, até porque um “problema grande” deste tipo de projetos é que costumam ser relativamente curtos. Resultado: torna-se impossível fazer monitorizações de longo termo, essenciais para avaliar os efeitos das medidas de conservação tomadas.

Importante vai ser também, nestes próximos anos, assegurar o bom estado das caixas-ninho e substituí-las quando for necessário, tal como conservar as paredes de nidificação. Muitos rolieiros, e não só, dependem hoje de ninhos artificiais para conseguirem procriar. No caso desta espécie, calcula-se que isso acontece com cerca de 25% da população portuguesa. “Se estes ninhos artificiais desaparecerem, é muito provável que esta e outras espécies declinem significativamente e que até possivelmente se extingam”, avisam as investigadoras.

Inês e Teresa Catry pretendem continuar a estudar também as rotas de migração, uma vez que o que acontece a milhares de quilómetros de distância, incluindo alterações climáticas, vai ter impactos na espécie também deste lado. Certo é que se tudo correr bem esperam regressar a Castro Verde na próxima primavera, talvez quando mais um fã destas belas aves azuis – e de facto, cada vez mais ‘birdwatchers’ e fotógrafos as procuram – partilhar a imagem de um rolieiro recém-chegado a terras alentejanas.


Agora é a sua vez.

Fotografou um rolieiro na ZPE de Castro Verde ou fora dela? Conseguiu fotografar a anilha, algo nem sempre fácil no caso destas aves? Envie esse registo para o consultório Que Espécie é Esta ([email protected]) ou então para a equipa do Projeto Rolieiro. Saiba mais sobre este projeto aqui.

Inês Sequeira

Foi com a vontade de decifrar o que me rodeia e de “traduzir” o mundo que me formei como jornalista e que estou, desde 2022, a fazer um mestrado em Comunicação de Ciência pela Universidade Nova. Comecei a trabalhar em 1998 na secção de Economia do jornal Público, onde estive 14 anos. Fui também colaboradora do Jornal de Negócios e da Lusa. Juntamente com a Helena Geraldes e a Joana Bourgard, ajudei em 2015 a fundar a Wilder, onde finalmente me sinto como “peixe na água”. Aqui escrevo sobre plantas, animais, espécies comuns e raras, descobertas científicas, projectos de conservação, políticas ambientais e pessoas apaixonadas por natureza. Aprendo e partilho algo novo todos os dias.

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