Banner

Foto: Pedro Andrade

Está nos genes: Conseguem as “letras” do DNA controlar a migração das aves?

21.11.2023

Pedro Andrade, investigador no CIBIO-InBIO (Universidade do Porto), revela-nos o que os cientistas já descobriram sobre o incrível mecanismo que leva algumas aves a voarem milhares de quilómetros, todos os anos.

O outono está perto do fim e para muitas aves este período corresponde a uma das etapas mais importantes do seu ciclo anual. Ao longo destes últimos meses, milhões de aves fizeram viagens de milhares de quilómetros desde os locais de reprodução até aos locais onde irão passar o inverno. 

Quando chegar o final do tempo frio, os sobreviventes tentarão fazer a viagem de regresso, enfrentando desafios como o cansaço, falta de habitat, predadores, ou tempestades. Este espetáculo natural repete-se de forma regular, ano após ano. Incrivelmente, e sobretudo nas espécies de aves mais pequenas, estes movimentos são feitos de forma isolada. Até os jovens que nasceram no próprio ano conseguem migrar, sabendo a altura certa do ano para viajar, a direção que têm que tomar, a velocidade a que voar, o período do dia no qual fazer a viagem… Tudo isto sem terem os pais a ajudar, ou um manual de instruções que lhes diga como, quando e para onde migrar.

Ou será que têm? Todos os seres vivos, grandes e pequenos, possuem em si um “manual de instruções”, passado de geração em geração, que os guia durante o seu desenvolvimento. Estou a falar naturalmente da informação genética, codificada por moléculas de ácido desoxirribonucleico (DNA) no núcleo das nossas células, que funcionam quer como o meio que transmite informação hereditária, quer como “livro de receitas” com as instruções para fazer proteínas essenciais para o organismo se desenvolver e se relacionar com o meio envolvente.

A observação de que, numa população, a maioria dos indivíduos têm um “programa migratório” muito semelhante entre si é uma sugestão muito clara de que não só a capacidade de migrar das aves é herdada dos pais, mas também traços mais específicos como a orientação ou a época do ano na qual migrar. Isto é confirmado por estudos em cativeiro, com espécies como a toutinegra-de-barrete ou a codorniz, que demonstraram que é possível, com cruzamentos controlados, e em poucas gerações, transformar uma população não-migradora em migradora (e vice-versa).

A toutinegra-de-barrete (Sylvia atricapilla) é um dos exemplos clássicos no estudo da migração. Estudos feitos com esta e outras espécies ajudam-nos a perceber como é que a variação genética das aves está associada ao controlo dos movimentos migratórios, e consequentemente, como a migração poderá evoluir ao longo do tempo. Foto: Pedro Andrade

Existe então algo no DNA das aves que funciona como o “manual da migração”, mas o que é? E como é possível que algo tão simples como uma molécula de DNA, composta por uma alternância ordenada de quatro elementos básicos – que a ciência traduz como as quatro “letras” A, C, G e T – consiga conter informação que uma ave usa para executar um comportamento tão complexo como a migração?

Ninguém sabe ainda muito bem! É só mais um dos mistérios que os cientistas tentam descobrir sobre a forma como a natureza funciona. Do ponto de vista mais fundamental, sabemos que o DNA de um organismo é constituído por uma longa sequência de quatro moléculas mais simples, os nucleótidos – as tais quatro “letras” – que quando estão ordenados da forma correta permitem às nossas células transcrever a informação e traduzi-la em proteínas.

Um pouco como se tivéssemos um livro de receitas: cada “ingrediente” neste “livro” gigante é um gene, constituído por uma sequência específica de DNA. Num vertebrado típico, como uma ave ou uma pessoa, o seu “livro de receitas” é constituído por cerca de 20 mil genes. As muitas interações que se estabelecem entre eles, e entre cada um deles e o meio envolvente, são fundamentais para o funcionamento desse organismo. Os fundamentos disto são bem conhecidos, mas a sua aplicação ao funcionamento de um ser vivo na natureza está muito longe de ser bem compreendido.

Um dos aspetos fundamentais da migração que se sabe ser controlado pela informação genética é a capacidade de orientação. Em experiências antigas, aves migradoras colocadas em cativeiro, sem acesso a informação exterior que lhes permitisse saber como migrar, acabavam na mesma por ter não só o instinto migrador como também tentar voar na direção apropriada consoante o período do ano (por exemplo, tentavam voar para sul no outono, e para norte na primavera). Cedo se percebeu que esta capacidade estaria ligada a uma perceção do campo magnético natural da Terra, mas como funciona esta sensibilidade?

Uma das características fundamentais desta bússola natural das aves é a sensibilidade à luz, nomeadamente a alguns comprimento de onda de luz (mesmo que em baixas intensidades) – tanto que aves migradoras expostas à ausência de luz, ou a luzes do espectro do amarelo ao vermelho, perdem a capacidade de interpretar o campo magnético natural. Isto ajudou vários investigadores a identificar um grupo de proteínas (e os seus genes associados) como candidatos na condução deste processo: os criptocromos, um grupo bastante particular de moléculas que adquirem propriedades magnetorecetoras quando são induzidas pela luz, permitindo a deteção do campo magnético da Terra.

Em experiências conduzidas em laboratório, um grupo internacional de cientistas demonstrou recentemente que um destes criptocromos, designado CRY4, e que é particularmente ativo nas células fotorrecetoras, que captam a luz que chega à retina das aves, tem sensibilidade ao campo magnético. Mais: a versão da proteína CRY4 de uma espécie migradora, o pisco-de-peito-ruivo, tem maior sensibilidade magnética do que as versões equivalente da CRY4 em espécies não-migradoras como a galinha e o pombo-doméstico. Num próximo passo, será essencial demonstrar o seu funcionamento em aves durante a migração…

No pisco-de-peito-ruivo (Erithacus rubecula), cientistas demonstraram que a proteína do gene CRY4 está ativa na retina e tem capacidade para detetar magnetismo, uma ferramenta essencial do “kit de migração” das aves. Foto: Pedro Andrade

Em qualquer caso, estas experiências sugerem que modificações em pedaços muito específicos do “livro de receitas” das aves podem moldar a forma como estas migram. Ainda assim, a migração é um comportamento extremamente complexo que requer a integração de várias adaptações específicas: desde mudanças comportamentais como a maior propensão para voos longos, à capacidade de orientação e à otimização aerodinâmica da morfologia destas aves, sem esquecer as alterações fisiológicas que lhes permitem o aproveitamento dos nutrientes essenciais para o voo. 

Caso precisem de modificar a sua estratégia de migração, mudar um só “ingrediente” da receita poderá não ser suficiente para estas espécies migradoras. Aliás, face ao panorama atual de alterações ambientais, que têm um grande potencial para afetar os padrões de migração, as aves poderão precisar de mudar drasticamente a forma como o fazem. Isto, caso as mudanças ultrapassem os limites de flexibilidade natural que cada estratégia já possui.

Mais uma vez, juntar os conhecimentos da ecologia e da genética ajuda-nos a perceber como alterações às instruções genéticas das aves poderão ajudá-las a responder às mudanças ambientais. Um bom exemplo é-nos dado pela codorniz, uma pequena ave que é sobretudo um migrador que passa os meses quentes na Europa e os meses frios em África. Nas regiões do Sul da Ibéria, como no Algarve, vários estudos demonstraram que nas últimas décadas aumentou consideravelmente o número de codornizes que “decidem” aí ficar durante todo o ano, em vez de encetar as longas migrações, talvez o reflexo de invernos cada vez mais amenos.

Ao comparar a informação genética destas codornizes com outras migradoras europeias, chegou-se à conclusão de que estas não-migradoras têm uma mutação genética particular – uma que não afeta apenas um gene, mas sim uma grande inversão num cromossoma que, de uma assentada, fez com que uma porção de 12% do genoma, com 7000 genes!, pudesse evoluir de forma diferente. 

Dentro destes 7000 genes poderão estar genes que explicam várias das características que diferenciam as codornizes “residentes algarvias” das “migradoras europeias”, incluindo o comportamento migrador, tamanho, cor e forma da asa. Deslindar quais características são explicadas por que genes, e como estes exercem a sua ação no organismo, serão os próximos e difíceis passos.

Há muito tempo atrás, surgiu numa codorniz (Coturnix coturnix) uma mutação genética que consistiu na inversão da maior parte do cromossoma 1. Hoje em dia, esta mutação é prevalente nas codornizes que encontramos no Sul de Portugal, e poderá explicar porque é que estas adquiriram um comportamento não-migrador, em contraste com as codornizes migradoras europeias. Imagem e fotos: Pedro Andrade

Estas são só algumas das primeiras descobertas que se vão fazendo, que nos ajudam a perceber como é que as aves conseguem, de forma inata, executar migrações longas e complexas, e como poderão mudar no futuro para acomodar as mudanças ambientais, com base na informação genética que carregam nas suas células. Há 200 anos, nem certeza tínhamos de que as aves faziam migrações… O percurso do nosso conhecimento tem sido também muito longo!


Referências

– Justen, H., & Delmore, K. E. (2022). The genetics of bird migration. Current Biology, 32(20), R1144-R1149.

– Sanchez-Donoso, I., Ravagni, S., Rodríguez-Teijeiro, J. D., Christmas, M. J., Huang, Y., Maldonado-Linares, A., … & Vila, C. (2022). Massive genome inversion drives coexistence of divergent morphs in common quails. Current Biology, 32(2), 462-469.

– Xu, J., Jarocha, L. E., Zollitsch, T., Konowalczyk, M., Henbest, K. B., Richert, S., … & Hore, P. J. (2021). Magnetic sensitivity of cryptochrome 4 from a migratory songbird. Nature, 594(7864), 535-540.


A nova série “Está nos genes”, sobre a genética da vida selvagem, é da autoria de Pedro Andrade, investigador em biologia evolutiva no CIBIO-InBIO, Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéricos (Universidade do Porto), onde trabalha sobretudo em projetos relacionados com a genética de animais selvagens e domésticos. Descubra aqui mais artigos deste cientista.

Don't Miss